Paranada

Quando me mudei de Belo Horizonte pro sudoeste do Paraná, tudo o que eu sentia era a falta. Falta inclusive do que eu nunca amei. Falta do queijo minas, que por anos eu não via nada demais. Saudades de doce de leite, que eu quase nunca comia porque não sou muito afeita a doces. Saudades do cheiro de café, dos restaurantes que eu comia em BH, do pastel frito recheado de queijo minas, e até do quentão feito com pinga.

Eu não consegui, por muito tempo, encontrar as coisas que me farão sentir saudades do Paraná se um dia eu saísse daqui.

Uma das primeiras coisas que consegui gostar foram os pinhões. Eu me mudei no início de junho, na época em que eles estão em toda parte. Comprei um pacote cozido ainda na estrada, enquanto íamos com a mudança e nossos três gatos dentro do carro. Gostei de cara. Talvez porque naquela oportunidade gostar da comida do lugar parecesse menos ameaçador: dentro do carro ainda parecia um passeio, uma aventura, e não uma coisa definitiva.

Já instalada aqui, tudo me parecia insosso. Passei a chamar o estado de Paranada. Eu mal conseguia entender e apontar o que era daqui de verdade, e o que me parecia ser não me dava curiosidade. O quentão de vinho tomado na festa junina da cidade, mesmo me parecendo genial, ainda assim só me fez sentir saudades do quentão de pinga. As batatas de taioba que achei na feira naquele inverno me pareceram também uma ideia comestível inédita que ninguém jamais ousaria fazer em Minas, e eu só conseguia sentir a falta dos refogados das folhas de taioba que eu comia em Minas. O queijo colonial, meu deus, o queijo colonial. Que saudades do queijo minas.

E agora josé bordado
E agora, José?

Mas minha maior resistência, sem dúvida, estava num dos elementos mais identitários da região: o chimarrão. No sudoeste paranaense, todo impregnado da cultura indígena-gauchesca, a cuia é elemento onipresente. E me parecia um hábito bizarro, que eu não conseguia entender. Eu não via como aquilo ali podia ser gostoso, nem entendia como conseguiam tomar isso no calor. Perdi a conta de quantas vezes me ofereceram chimarrão e eu não quis nem provar. Chimarrão, meus amigos, não. Eu sou do povo do café.

Com o tempo, no entanto, comecei a ter menos medo de algumas dessas coisas. Comecei a gostar dos amigos, do ritmo da vida, de observar o que tinha por aqui. E por conta desse ir gostando, o inverno da estação e da alma passou, e resolvi experimentar um tereré.

Os gaúchos vão achar uma heresia, mas foi por aí que eu me rendi. Soava menos tradicional, e talvez por isso, fiquei com menos medo. Tereré é a versão paraguaia (do Paraguai mesmo, e não “falsificada” como costumam usar o nome do pobre do nosso vizinho) do mate, com a particularidade de que se bebe com água gelada. Muitas vezes se adiciona limão, hortelã, ou boldo junto da erva. A bomba (aquele “canudinho” metálico pra se tomar o tereré ou chimarrão) é colocada no copo, seguida da erva, e depois se completa com água. A erva mate do tereré é triturada bem mais grossa em comparação com a do chimarrão, e a gente deve preencher com ela entre metade e 2/3 de um copo. Também é diferente o recipiente utilizado: não é preciso a cuia de porongo — que é uma espécie de cabaça — pra apreciar a bebida. A cuia do tereré é chamada de guampa, que também significa “cuia” mas costuma ser feita de chifre de boi. Porém, dá pra usar um copo tranquilamente sem parecer que se comete um crime. E como pelo menos por aqui o tereré não é sinônimo exatamente de tradição, também aparece a liberdade de se avacalhar: tem quem ponha suco de pozinho, refrigerante no lugar da água e outras coisas particulares do gênero.

Beber tereré é bem parecido com beber chimarrão. O copo ou a guampa circula entre os que conversam, e cada um que pega o copo completa com água gelada, e bebe até terminar. Chegando no fim, se passa pro próximo, que faz de novo a mesma coisa. Ah! E nunca, não, em tempo algum, por favor, não mexa na bomba. Mexer na bomba pode levar a um entupimento dela e estragar a diversão. E parece, também deixa pessoas enfurecidas e denuncia a sua pouca familiaridade com a coisa toda.

Tive coragem de aceitar o tereré pela primeira vez na casa de um amigo, numa roda de pessoas que conversavam sentadas no quintal, no fim de uma tarde de verão. Era uma tarde fresca. Esse amigo tinha assado um pão, e eu levei uma torta salgada e uma pasta de berinjela pro encontro. Abrimos primeiro um vinho branco, e tudo parecia tão bucólico e descontraído. Quando a garrafa de vinho acabou, apareceu um copo de tereré, e não sei se foi efeito do vinho ou ter me sentido tão parte de tudo que me levou a provar a bebida.

Naquele dia, perguntei um pouco mais sobre como preparar tereré, que erva comprar, ou como escolher uma bomba. Passei a incorporar um copo de tereré às minhas tardes, enquanto lia e escrevia.

***

Me dei conta do quanto podia ser difícil se render às tradições do gosto quando minha mãe veio passar suas férias comigo. Eu tinha uma caixa de erva pra tereré, e ofereci de preparar pra gente. Ela aceitou, provou e gostou. Pediu no outro dia outra vez. Assim, ó: “faz outro tereré pra mim”, como se não tivesse nada demais em aceitar aquele copo. Era só o partilhar de uma novidade refrescante inofensiva com a filha. A partilha, logo ela, que é o coração dessa tradição de cuias e bombas, foi que deixou mais claro porque eu tinha tanta aversão em provar chimarrão: eu tinha medo de que se gostasse dessas coisas novas viria junto um abandono das coisas velhas. Me dissolveria no novo e ficaria perdida, entre o que se foi e o que seráentre Minas e o Paraná, e não seria absolutamente nada. Paranada.

As férias da minha mãe coincidiram com o fim do verão. Eu já estava com medo dos dias frios voltarem, e a essa altura eu me ressentia de não ter aproveitado mais as tardes de verão paranaenses com tereré. Mas pra contrariar as expectativas, o outono não deu as caras quando era sua vez e esses dias de férias foram muito quentes, uma rebarba do verão. A gente pôde saborear vários tererés. Era um pouco a mistura do novo e do velho: a estação que passou na estação que já deveria ter vindo, e uma família mineira curtindo as tarde paranaenses, tomando tereré com um pedaço de queijo. Nem tudo desaparece sem deixar rastro quando o novo chega, embora as vezes possa ser meio difícil engolir o novo. Mas ao que tudo indica, no próximo inverno pode ser que eu finalmente aceite algum convite pra tomar chimarrão. Torçam por mim, ou me convidem.