Eu só queria ter do mato um gosto de framboesa

Achei na feira um senhor que vendia umas florezinhas amarradas num pacote de redinha. Tive a impressão que sabia do que se tratava, mas nunca as tinha visto ao vivo. Resolvi perguntar se era vinagreira, mas o feirante me disse que se chamavam capilé, e que nem todo mundo conhecia porque quem cultivava por aqui eram somente os colonos italianos. Vinagreira ou capilé, eu quis experimentar. Perguntei como ele preparava: me disse pra tirar as sementes do meio, e bater no liquidificador com água. Sem complicações.

flores de vinagreira ou hibisco
Flores de vinagreira ou hibisco. Com essa quantidade (500g) da pra fazer pelo menos uns 3 litros

Quando cheguei em casa, fui procurar no meu livro sobre PANCs e ela estava lá: era capilé, mas também era vinagreira, hibisco, rosela, groselha, groselheira, caruru-azedo, quiabo-azedo, e eu não duvido se ainda tiver outros nomes. No fundo, nenhum nome me pareceu muito adequado: todos eles possuem alguma outra planta com esse mesmo nome. Há uma verdura que também tem o nome de vinagreira, e groselha é uma fruta que não dá no Brasil. Apesar de também ser chamado de hibisco, não é o mesmo hibisco mais comum — aquele que é uma árvore e que a gente vê pelas cidades (aqueles outro hibiscos também são comestíveis, mas confesso que nunca experimentei). Mas gostei mais do nome hibisco porque as duas flores são ambas da mesma família. O nome científico das flores que eu comprei é Hibiscus sabdariffa

hibiscos comestíveis
As folhas com os cálices ainda fechados, no ponto para serem colhidos
Hibisco
Plantado em vaso também é possível
   

Pela foto, dá pra ver que esse hibisco é um arbusto pequeno, com poucos ramos, em que você colhe as flores antes que elas abram. O feirante me disse que a planta, por aqui na região sul do país, morre no inverno com as geadas frequentes. Provavelmente nas demais regiões a planta deve vingar o ano inteiro. No sul-sudeste do Brasil consomem-se apenas os cálices florais. Uma forma de consumo muito popular nessas regiões, dentro das comunidades japonesas, é a conserva em sal, que se assemelha muito às umeboshi (ameixa japonesa). Já na região norte-nordeste, é mais comum o consumo da folha, que também pode ser encontrada à venda em feiras livres. O arroz de cuxá, por exemplo, é um prato tradicional do Maranhão que leva as folhas dessa planta.

A sugestão de como usar o hibisco no livro, no entanto, era diferente da que me deu o feirante. Enquanto o feirante me falou pra bater as folhas em água apenas, o livro me sugeriu fazer um chá bem concentrado. Para tirar a prova, resolvi experimentar fazer dos dois jeitos. E no fim dessa experiência, propus uma terceira sugestão de bebida: um “refrigerante caseiro”, uma bebida fermentada de hibisco, que se gaseifica naturalmente.

Teste 1: Chá-suco de hibisco

Comecei retirando o fundo dos cálices das flores com uma faquinha. É só contornar o fundo que o meio da flor sai. Nesse meio estão as sementes, que eu salvei pra depois se transformarem em novos pés de hibisco. Deu também pra entender a ideia do nome “quiabo azedo”: esse meio da flor se parece um pouco com o quiabo na textura. É um pouco aveludado, mas que quase espinha. E lá dentro está cheio de sementes brancas arredondadas— como o quiabo.

A verdade é que se você quiser fazer o chá-suco com os cálices inteiros é possível. Não vai amargar ou interferir no sabor, e as sementes também tem composto interessantes. Mas a verdade é que separo elas com o intuito de semear na próxima temporada e distribuir um pouco delas por aí também. Fica à gosto de quem está fazendo.

cálices de hibisco vinagreira
As flores sendo preparadas: de um lado os cálices vermelhos que serão usados, do outro o miolo verde que contém as sementes

Pra fazer o chá:

50g de hibisco (sem as sementes — em torno de 10 flores)
1l de água
4 colheres de chá de mel

Pra preparar é só esquentar água, colocar as flores e deixar por 10 minutos. Depois tem que coar. Vale botar na geladeira pra gelar se preferir. Na hora de servir, pode tomar natural ou acrescentar uma colher de mel pra adoçar.

A cor fica incrível: um rosado difícil de se encontrar. O gosto é azedinho suave (e daí dá pra entender o nome vinagreira), e lembra mesmo frutas vermelhas, como a framboesa. E se eu não soubesse como foi feito eu diria que não era um chá, e sim um suco.

Teste 2: Suco batido de pétalas de hibisco

A segunda tentativa —seguindo a sugestão do feirante — foi feita na mesma proporção do chá-suco. Bati tudo em um liquidificador e coei. O sabor e a cor ficaram mais suaves, e com isso o suco pareceu ser mais refrescante. O rendimento foi ainda melhor porque o que ficou sólido na peneira, eu coloquei pra fazer outro chá com um pouco menos de água (um 1/2l). O chá feito com as sobras do suco, como era de se esperar, também ficou mais suave do que o chá com os cálices íntegros.

Chá de hibisco
Suco de hibisco, feito com as pétalas frescas batidas: a cor é incrível

Teste 3: Refrigerante caseiro de hibisco fermentado

Bebidas fermentadas são bebidas que a gente deixa uma cultura de bactérias boas crescer, e enquanto elas se desenvolvem, consomem o açúcar que está disponível nesse líquido. Como subproduto do consumo desse açúcar, essas bactérias produzem gás carbônico, gaseificando naturalmente a bebida, e também produzem álcool, dependendo da quantidade de tempo que você as deixa fermentar. A quantidade de álcool também varia de acordo com o tipo de bactéria que está fermentando a sua bebida. É assim, por exemplo, que se fazem vinho, cerveja, espumantes. Mas a minha intenção não era produzir uma bebida alcoólica e sim um refresco gaseificado. E isso não só é possível, como também essas bebidas são consideradas benéficas para a saúde.

Minha bebida fermentada pode ser chamada de refrigerante pela semelhança na aparência: é uma bebida adocicada e gaseificada. Porém, as semelhanças acabam aqui. Meu fermentado de hibisco é um refrigerante com pouco açúcar (as bactérias vão consumindo uma boa parte dele), e tem os benefícios que você pode imaginar que existem em comer “lactobacilos vivos” — porque eles estão nessa bebida. A cultura que usei para fermentar foi soro de leite: isso é o que sobra quando a gente faz iogurte caseiro, e depois coa esse iogurte, usando um pano. Você também consegue soro de leite colocando um pote de iogurte comprado em um pano. O que pinga do outro lado é um líquido claro, quase transparente. Isso é o soro do leite (e o que sobrou em cima no pano é iogurte grego. O de verdade, e não o que nos vendem engrossado com espessantes).

Já expliquei como funciona cada um dos ingredientes dos sucos fermentados nessa postagem sobre ginger ale. Vale a pena dar uma olhada pra entender melhor o processo e ganhar mais autonomia pra fazer outras bebidas fermentadas.

Para o fermentado de hibisco, resolvi fazer assim:

1/2 xíc. de mel (ou açúcar branco, mascavo ou melado)
1l de chá-suco de hibisco (feito na receita #1)
suco de 1/2 limão
1 col. de café de sal (sem ser iodado — se não encontrar, não coloque o sal!)
2 col. de sopa de soro de leite OU 1/2 col. de chá de fermento biológico seco

Coloquei tudo em uma garrafa vazia de 1,5l, e tampei. É importante arrumar uma garrafa que tenha uma capacidade maior do que a quantidade de bebida que você está produzindo, pois durante a fermentação haverá produção de gás. O espaço que sobra serve para não aumentar demais a pressão na garrafa: o gás vai ocupá-lo. Eu usei uma garrafa reaproveitada de suco de uva — que de quebra, é bem bonita — , mas você pode usar um pet de refrigerante também. Use o que estiver à mão.

Garrafa para fermentação
Fermentação natural: colocando mel na garrafa

Deixei por 4 dias em temperatura ambiente. O tempo pode variar, pois depende da temperatura: em dias mais quentes a fermentação acontece mais rápido, e em dias mais frios é mais lenta. O tempo estava bem quente por aqui. O que me auxilia a saber se já fermentou o suficiente é que a tampa da garrafa estufa, fica durinha ao se apertar. Quando isso acontece, significa que foi produzido gás lá dentro, e é isso que deixou a tampa mais firme. Quando vejo isso, coloco a garrafa na geladeira — o que vai diminuir o ritmo da fermentação — e abro quando está gelada e nos apetece. Pode ficar na geladeira vários dias, sem nenhum problema.

Se você não colocar a garrafa na geladeira nesse período, o que vai acontecer é que a bebida vai se transformar em uma bebida alcoólica. E se continuar ainda a deixar fermentando, no próximo estágio você vai ter vinagre caseiro. É bem divertido. Mas eu queria a bebida gaseificada, e por isso resolvi parar nesse estágio inicial.

A bebida fermentada de hibisco é das melhores bebidas fermentadas que eu já fiz. A cor ficou ainda mais intensa que nos sucos — um rosa inacreditável — e o sabor se acentuou. Não ficou mais azedinho, mas sim mais saboroso. Geralmente é o que a fermentação faz: adiciona sabor e equilibra o açúcar. O gaseificado também ajudou a dar uma graça deliciosa, dando aquelas cócegas na língua enquanto a gente bebe, e que parecem tornar a bebida viva. Tim-tim!