Quando PANC se transforma em fetiche (mas não deveria)

Sou menina da cidade grande, sei como funciona a vida nesses lugares, mas agora que moro no interiorzão fico bastante isolada, e por mais que eu veja o que rola por aí pela internet e outras telas, nunca vai ser a mesma coisa.

Passeando na feira orgânica do Bom Fim em Porto Alegre durante uma viagem, foi ótimo pra botar um monte de coisa sobre PANC em perspectiva. Nessa feirinha do Bom Fim tinha muita coisa PANC disponível, assim, sem pedir pros feirantes nem nada (que é a forma como eu consigo as coisas por aqui). Eu nem tinha ideia que a coisa andava tão pop assim.

pizza PANC
Um panfleto que peguei andando pela feira em PoA: tem pizza PANC

Vi vários molhos de verduras que não eram comuns de serem vistos uns anos atrás – vi folha de batata doce, almeirão de cavalo, peixinho da horta – frutas, legumes – me lembro especialmente de mini-pepinos – , flores de hibiscos e de sabugueiro, entre outras. Achei isso incrível.

No entanto fiquei atenta também ao modo como essas coisas eram ofertadas. Os molhos de verduras vinham em tamanhos razoáveis e preços compatíveis com outras verduras orgânicas numa capital, o que não significa exatamente barato, mas já as flores e frutas eram tão bibelôs que vinham em microcaixinhas. Dava pra perceber que esses itens tinham preços diferenciados.

Uma coisa que supostamente é pra fazer repensar a nossa relação com a comida de repente está na MESMA lógica. Um fetiche, em caixas minúsculas, em lugar de refletirem a abundância, o localismo e a facilidade de cultivo que essas plantas teriam.

Barraca de feira ervas
Mais ervas frescas diferentes na feira: para chá

Recentemente tive a oportunidade de participar de uma oficina de PANC em uma faculdade de gastronomia, e foi um outro momento de pensar sobre a interpretação que damos aos ingredientes. Na oficina, um dos ingredientes apresentados era o genipapo, uma fruta nativa da América do Sul, muito usada para fazer sucos e licores principalmente nos estados do Nordeste. Quando colocado no fogo e em presença de proteína, o genipapo é um corante natural de cor azul, uma cor muito rara de se encontrar naturalmente. E por isso, ele tem sido muito valorizado como um ingrediente muito especial.

Na oficina, trabalhamos com genipapo produzindo bolo, brigadeiro e uma massa fresca recheada, todos azuis. A minha primeira pergunta, no entanto, foi “onde vocês conseguiram genipapo?”. A oficina acontecia no sul do país, no sudoeste paranaense fronteiriço com SC, local em que o genipapo não cresce — ele é uma fruta tropical, de calor, e aqui é uma zona temperada. A minha pergunta refletia sobre essa forma fetichizada que estabelecemos com os ingredientes. Que sentido há em exaltar um ingrediente que vai ser caro, raro, indisponível onde moro, tal e qual como qualquer coisa importada da Itália? Como posso me apropriar de fato de uma receita e colocá-la dentro da minha realidade? Como a história contada em uma receita pode fazer sentido pra mim?

O problema não é existirem receitas e técnicas com genipapo e elas serem ensinadas, mas é de insistirmos em um uso que não condiz com o contexto. Uma receita não é uma prescrição, mas uma história sendo contada: ela tem que servir a quem faz uso dela, à sua realidade ou ela nunca fará sentido. Conhecer várias receitas é entrar em contato com histórias diversas, mas não necessariamente todas as histórias nos tocam e dizem da nossa experiência. A minha pergunta, dado o contexto em que estávamos na oficina, era porque contar a história do genipapo e não outras histórias que são desse lugar?

É uma pergunta válida porque se não construímos uma crítica dos ingredientes e da forma como a gente se relaciona com eles, corremos o risco de apenas criar novos fetiches e jeitos prescritivos do que é a boa cozinha e, assim, perdemos a riqueza que existe na multiplicidade de elementos e jeitos de experimentar a vida.

Quando escrevo, no fundo, eu falo de um lugar muito específico, dum interiorzão onde eu realmente tô falando de mato, de coisa que cresce à rodo, e de coisa que só tem aqui. Que eu frequentemente ganho de graça, colho no quintal dos outros, leio na paisagem urbana, coisas assim.

Acho que é importante registrar e multiplicar esses achados, o modo de fazer e de cultivar porque é claro que é possível compartilhar memórias e existirem achados comuns com outras pessoas e outros lugares. O lugar do qual eu falo provavelmente não é possível de se repetir numa cidade grande, mas serve de inspiração, informação e principalmente, de convite pra experimentação e pra fazer suas próprias descobertas. Nunca deveria ser lido como uma prescrição do estilo você precisa provar isso.

Não deveríamos fetichizar nenhuma PANC. O principal é desenvolver um olhar pra enxergar variedade e a abundância que é própria de cada lugar. Também é bom estar atento de que ninguém está inventando a roda ao falar dessas plantas consideradas não-convencionais. Existem espécies comestíveis novas sendo descobertas? Algumas sim. Mas majoritariamente nós estamos falando de resgate de coisas que nós conhecíamos no passado, que alguns grupos faziam uso costumeiro, e que acabou esquecido pela desvalorização imposta pela uniformização alimentar que o capital promove. Não caia na ilusão de achar que PANC é só sobre provar novos sabores e a gourmetização da vida cotidiana, nem que sejam itens exóticos ou diferenciados. Se eles estiverem sendo oferecidos dessa forma pra você, pare e reflita: exotismo pra justificar preço é só mais do mesmo, então infelizmente tem algo errado nisso aí.