Eu já quase morri de fome mas hoje estou bem

Tenho uma conhecida de quem gosto muito que me faz sentir muito mal sobre as coisas que como todas as vezes que a encontro.

Ela admira várias das coisas que eu faço – é fã e espalha a palavra do meu refrigerante caseiro de gengibre -, e eu também sempre faço perguntas sobre germinação que ela adora fazer. Também compartilhamos de uma visão política e de mundo semelhantes, e sempre temos muito em comum pra conversar – mas o caso é que quase sempre que eu a encontro preciso de uns dias pra me recuperar.

Nas últimas vezes em que nos vimos, o pão tem sido um dos maiores problemas. É contraditório porque ela coloca um pacote sobre a mesa da própria casa e nos oferece dizendo com desdém “tem também esse lixo”. Ela pede que meu marido a ensine alguns truques pra fazer pão mas quando finalmente serve os pães que fizeram juntos ela pede pra não deixarem perto dela na mesa. Ou vamos a um restaurante e pedimos baozi, aqueles pãezinhos chineses assados no vapor em cestinhas de bambu, e enquanto ela os segura com o hashi precisa dizer “eu adoro essa porcaria”.

A mesa é um lugar em que compartilhamos muitas coisas. Não é só comida. É o momento, a intenção, e na maioria das vezes nós compartilhamos também as palavras. Ouvir ela dizer como cada um desses alimentos são desprezíveis é estranho, principalmente se considerarmos que estou dentro da casa dela, ou compartilhando de um momento agradável num restaurante que escolhemos e que isso é o que ela me oferece ou o que estamos escolhendo viver.

Sinto um pouco de pena pela situação. Quando são coisas que não acho dignas ou não tenho interesse que façam parte da minha rotina, eu simplesmente não os tenho em casa ou não saio pra comer aquilo. Parece tão triste não conseguir colocar uma coisa na mesa sem se sentir constrangido em ter que dar uma desculpa pela presença dela ali.

Mas a verdade é que fico chateada e essas falas me afetam. Todas as vezes eu me pergunto se as coisas que estou comendo são um pouco inadequadas – eu busco mesmo muito prazer na comida, será que é demais? -, e se eu devia estar experimentando comer outras coisas. Eu quase sempre volto desses encontros muito inclinada a começar algum tipo de restrição alimentar – quem sabe tentar diminuir os carboidratos, ou comer um pouco mais de comida crua, ou ainda evitar aquela garrafa de vinho que gosto tanto de tomar no meio da semana. E eu me sinto inevitavelmente inadequada.

28435660_416844442097655_4168765557522300928_n

Recebi um email de um leitor do blog que havia entrado numa postagem minha sobre substituição do fermento químico pelo combo bicarbonato+limão, pra não precisar usar os fermentos comprados que agora são todos transgênicos. A pergunta dele, no entanto, era sobre outro tipo de fermento, o biológico, que a gente também chama de fermento natural, aquele que a gente usa pra fazer pão. Ele queria saber se eu sabia como fazê-lo de uma forma “mais saudável”, que não tivesse glúten e fosse low carb.

Tentei muito ser generosa. Isso está longe de ser a minha praia, e não tenho nenhum tipo de artigo publicado minimamente parecido com isso – mas ele não tinha obrigação de saber. A pergunta é desconcertante porque eu nem mesmo vejo sentido nisso: com tantos pratos que só tem legumes e verduras porque se preocupar em fazer um pão – justamente um pão – que tenha poucos carboidratos? E o que afinal tem de tão pouco saudável no fermento natural?

Escolhi me explicar longamente com uma resposta mais técnica.

Eu escrevi a ele contando que o fermento biológico caseiro, esse que a gente chama de fermento natural, funciona exatamente criando bolhas de ar a partir da digestão dos açúcares do trigo, e essas bolhas ficam presas na rede elástica de glúten. Sem o glúten, as bolhas escapam e não tem pão. Se você reparar, receitas de pão sem glúten não costumam levar fermento biológico e sim fermento químico (o famoso pó royal, o tal que eu substituo por bicarbonato + limão). Na prática, significa que não dá pra dizer que sejam “pães”, justamente porque o pão é uma massa elástica fermentada (e é o glúten, uma proteína natural do trigo, que dá essa elasticidade). O que o bicarbonato ou pó royal fazem é criar bolhas muito frágeis, que escapam se a gente mexe a massa demais ou abre o forno na hora errada, e que nunca “digerem” ou transformam os amidos.

E a parte do low carb, bem. Como fermentar algo sem alimentar as leveduras que só sobrevivem com açúcares?

Fiquei, no entanto, muito tempo pensando sobre esse email. Não era uma pergunta sobre restrição alimentar, que é algo que sempre existiu (e que inclusive tenho as minhas). Tem sim restrição à glúten, à lactose, mas também à carne, açúcar, oleaginosas e não estou questionando a legitimidade delas. Mas aquele email era outra coisa.

Toda essa onda do saudável é muito complexa. As pessoas perseguem um ideal de pureza na alimentação que é muito equivalente à pureza que se buscava (e ainda se continua buscando) nos corpos. O problema dessa busca foi posto em cheque por todo o movimento body positivity, que tenta enxergar beleza nos corpos de todos as formas e tamanhos, e apontar os problemas de constranger pessoas por serem gordas demais, magras demais, altas demais, de quadris largos, ou o que quer que seja. Ter o corpo sistematicamente criticado não é só errado. É nocivo e não raro é associado com o aparecimento de ansiedade, depressão, transtornos alimentares e dismorfia corporal.

Com toda essa crítica ao longo dos anos ficamos mais atentos (minimamente que seja) a como nos relacionamos com as formas dos nossos corpos. Por outro lado, parece que transferimos esse olhar julgador pros alimentos.

É a comida agora que vira uma coisa que precisa ser “limpada” – seja de glúten, carboidratos, gorduras – do mesmo jeito que tentávamos “limpar” os corpos – de gorduras, flacidez, rugas.

O alimento que mantém essas características que julgamos que precisam ser limpas ficam marcados: é bem comum a gente ouvir o tal do “comida lixo”, que é uma outra forma da gente dizer que algo é tão desprezível que deveria mesmo ser descartado.

Os alimentos purificados – o pão sem glúten, o brigadeiro de whey sem leite condensado, o sorvete fit sem gordura ou açúcar, e todo um arsenal de comidas gravadas com a palavra FUNCIONAL na embalagem – são uma versão alimentícia mais limpa e saudável. Mas tem mais: pra quem olha de fora parecem ter sido varridos deles também o prazer, a memória afetiva, e até o aspecto de serem mesmo “comidas”, pois essas coisas a gente não come, com elas o principal é que a gente se nutre.

A questão é que o princípio do prazer é tão forte na gente que ele não é varrido dessas comidas. Ele só muda de lugar. Em vez de estar na simplicidade de se saciar com a coisa concreta que é um alimento, ele passa a morar na superioridade moral da pureza.

O que os alimentos purificados tem de prazeroso é justamente essa possibilidade daquele que come se sentir melhor que os demais, seja porque são mais saudáveis, mais abnegados, persistentes na dieta, ou mesmo mais conhecedores de formas saudáveis de se comer. Apontar que o pão, o brigadeiro, o sorvete são só uma exceção, uma coisa do outro – do gordo, do porco, do errado – é reforçar essa superioridade. Por isso, de certa forma, não é incomum sentir um incômodo quando alguém chama um pão de porcaria ou oferece uma gordice e mostra uma caixa de bombons. Por isso a gente se sente inferior.

Só que essa superioridade moral da “comida pura” é enganosa tal e qual o fermento de pão que não tem glúten nem carboidrato, ou o brigadeiro que não é nem nunca foi um brigadeiro. A busca do alimento saudável é uma prisão tão horrorosa quanto aquela do corpo perfeito, que a gente conhece bem.

39124396_223244865037204_6327643663564275712_n.jpgA parte mais difícil, no entanto, é que pra quem se vê dentro desse redemoinho de fazer escolhas somente baseadas num ideal de “saudável”. É muito difícil reconhecer que esse comportamento causa sofrimento. É difícil explicar pra alguém que a ideia de se estar fazendo algo em nome da saúde possa ser meio ruim. A justificativa pra todas as restrições e buscas do bom alimento parece tão nobre.

Não é muito diferente do que se passa com uma pessoa que vive a anorexia. O sofrimento da recusa da comida começa com a justificativa de uma busca pela magreza. Geralmente nessa etapa, as recusas costumam ser incentivadas, aplaudidas, e a força de vontade é até cobiçada pelas pessoas mais próximas. Quando começa a ficar evidente que todo aquele sacrifício também é um fardo, e principalmente uma ameaça à vida, e as costelas, desmaios e arritmias cardíacas começam a aparecer, já é tarde demais pra parar de bater palmas.

Uma das etapas mais confusas e doloridas do processo de adoecimento de um transtorno alimentar é a dificuldade de reconhecer que a dieta e as recusas são um problema e não um estilo de vida. Quem está preso no redemoinho só enxerga o corpo torto, o estômago saltado, a gordura circulando nas veias depois de comer uma fatia de pizza. As justificativas fazem o mais completo sentido, e encontram um imenso abraço do mundo lá fora.

45272125_2191634857761023_7924890292760589839_n

Saber a medida do quanto buscar as coisas saudáveis e até onde essa palavra faz algum sentido é um desafio imenso num mundo em que nada parece ser de verdade. Não é a toa que por mais que nos sintamos confortáveis com aquilo que comemos continuamos tão ansiosos por algo que mate essa fome e seja finalmente imaculado, simples e puro.

Este texto foi originalmente enviado na newsletter. Pra receber as próximas assine neste link

As ilustrações deste post são da incrível Annelies, que você pode acompanhar no Instagram.