PANC e a ecologia das espécies invasoras

Muitas vezes quando estamos falando de PANC, você encontra duas situações comuns: plantas nativas do Brasil ou da América do Sul que perderam ou nunca tiveram grande  valorização, seja por questões étnico-coloniais ou desvalorização impulsionada pelo agronegócio interessado em promover uniformidade alimentar; ou plantas exóticas, que vêm de outros continentes e se proliferam abundantemente porque são estranhas à flora e fauna do local.

Muitas vezes quando apresento alguma planta desse segundo tipo – as exóticas – as pessoas ficam receosas. Alguns colocam defeitos (“mas então é uma planta perigosa pra flora, não se devia incentivar o consumo?”) ou então argumentam que não são as plantas certas a serem valorizadas dentre as não convencionais, como se houvessem as espécies corretas pelas quais devíamos nos interessar.

Essas colocações têm algum sentido porque a questão das espécies exóticas consideradas invasoras é realmente complexa.

Uma espécie exótica pode se transformar realmente num problema por estar fora da sua área de origem. Ela gera um desequilíbrio quando não existem competidoras ou predadores suficientes pra lidar com ela, se espalhando de maneira vigorosa e ameaçando a sobrevivência de outras espécies já equilibradas. Não é sempre que isso acontece, mas existem vários casos assim muito bem documentados.

É o caso, por exemplo, da uva japonesa, que já apresentei por aqui em outro post. A uva japonesa (o nome científico é Hovenia dulcis) é uma árvores originária da parte subtropical da Ásia (que inclui o Japão mas também parte da China, a Coreia e a região do Himalaia) e é amplamente usada por aqui pra barrar vento em plantações e granjas, inclusive com recomendação da Embrapa. Por ser muito doce quando madura, acaba sendo a alternativa preferida dos pássaros, o que contribui pra uma dispersão desenfreada em larga escala. Como não é nativa, tende a dominar o ambiente onde se instala e por vezes acaba se tornando um problema, por acabar com a diversidade local. Ela é, inclusive, uma das espécies na lista de espécies invasoras em Curitiba, o que significa que o seu cultivo não deve ser incentivado naquela região (e talvez nem em outras).

No livro A Sexta Extinção, da Elisabeth Kolbert, há um capítulo inteiro dedicado ao tema. Ela explica que a “relação espécie-área” é uma das poucas regras sem muita discussão em ecologia: quanto maior a área usada pra colher amostras de plantas, maior vai ser o número de espécies coletadas. Ela é expressa pela seguinte equação: S=cAz, sendo que S é o número de espécies, A é o tamanho da área e c e z são constantes, que variam de acordo com a classe taxonômica e a região. Embora essa correlação não seja linear e sim em forma de curva, ela é muito importante porque é válida pra qualquer tipo de território. Pode ser uma ilha, uma cadeia de montanhas ou uma floresta tropical e o gráfico continua se expressando nesse mesmo formato.

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Um exemplo típico da relação espécie-área, mostrando a forma da curva. O gráfico foi tirado do livro A Sexta Extinção, da jornalista Elisabeth Kolbert (editora Intrínseca)

Pra se refletir sobre extinção de espécies, essa é uma equação muito relevante. Uma forma bem simplificada da gente entender o que estamos fazendo com o mundo é perceber que estamos diminuindo os tamanhos das áreas com devastação e a antropização. Mas também, como estamos alterando os biomas as constantes c e z sofrem impactos. Isso acontece não só por conta da destruição, mas porque estamos constantemente migrando espécies do seu habitat.

Charles Elton, biólogo britânico autor do livro “The Ecology of Invasions by Animal and Plants” (A ecologia doas invasões por animais e plantas) faz uma analogia pra explicar o que acontece quando alteramos os biomas transportamos plantas de uma lado a outro:

Imagine [vários tanques de vidro e] que cada tanque contenha uma solução diferente de substâncias químicas. Em seguida imagine que todos os tanques são conectados a seus vizinhos através de tubos longos e estreitos. Se as torneiras dos tubos fossem deixadas abertas apenas um minuto por dia, as soluções começariam a se misturar bem devagar. As substâncias químicas se recombinariam. Alguns novos compostos se formariam e alguns dos compostos originais sumiriam. [Mesmo que levasse muito tempo], a variedade original teria sido eliminada. É exatamente o que se pode esperar que aconteça ao colocarmos plantas e animais há muito tempo isolados.

A culpa dessas invasões não é só do cultivo proposital como é o caso das uvas japonesas. As viagens em escala global tornaram inevitáveis essa contaminação, e isso não é algo limitado aos dias de hoje. As grandes navegações iniciaram um processo de trocas e colonização da fauna e flora, muitas vezes involuntária. Muitas das nossas “daninhas” são originárias da Europa: a tansagem era considerada pelos indígenas norte-americanos como um sinal de que ali havia passado o colonizador, a ponto deles chamarem essas plantas de “pegadas do homem branco”. Os dentes de leão, os nabos forrageiros e as alface do mato também são europeus, enquanto bardana, capim cidreira e mesmo a manga vieram de carona da Ásia e se adaptaram muito bem por aqui.

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Capa do livro A Sexta Extinção – Uma história não Natural

Quando falamos de comer algumas dessas plantas, também estamos propondo formas de se lidar com o problema das espécies exóticas consideradas invasoras.

A grande questão que PANC traz de inovação não é criar novos desejos por espécies que você nunca ouviu falar ou experimentou, mas sim subverter e questionar porque comemos o que comemos, além de aprender a reconhecer as plantas que estão no nosso entorno neste momento pra criar uma outra relação com elas. PANC é uma ideia que propõe deixar de percebê-las como daninhas ou mesmo invasoras e lidar com a realidade que se apresenta, aproveitando e apreciando as qualidades delas: o sabor, mas também a facilidade, a proximidade, a alegria de colher seu próprio alimento.

Comer essas plantas invasoras que já estão instaladas também é usar da nossa habilidade como predadores – um dos mais devastadores – de uma forma muito positiva. Não sugiro isso de forma ingênua, como se fosse uma solução pra “Nova Pangeia” que estamos criando com o encurtamento radical das distâncias, mas comer essas plantas que não são originárias do nosso território é uma forma nova de lidarmos com a realidade que se apresenta na qual essas plantas já fazem parte. E nesse sentido, não há porque pensar que exista uma escala de plantas que merecem ser amadas por serem nativas e outras que não mereçam por serem estrangeiras. O melhor caminho pra lidar com elas é perceber e apreciar o aqui e agora que vivemos.

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