Natal Tropical

Tenho uma certa dificuldade de admitir que gosto de Natal. Talvez seja difícil pra mim porque de fato alguns encontros são muito decepcionantes, envolvem resgatar sentimentos desagradáveis e até desafetos com algumas pessoas, e é terrível a obrigação de ter que lidar anualmente com isso. Mas há também uma parte interessante. Eu gosto desse retornar a alguma coisa familiar, da sensação de um tempo estar terminando e de me ajeitar pra começar de novo, e do sinal de que é preciso me movimentar que esse tempo me causa. Eu enfeito a casa, e apesar de ser tão comedida, posso até me permitir ser exagerada nos preparos, na delicadeza dos presentes – tudo é provisório, feito pra durar só alguns dias, é fácil se lembrar que é uma oportunidade de viver um momento fugaz. Logo as festas acabam e outra coisa começa.

Quando eu e minha irmã éramos mais novas, nós falávamos de outros incômodos com as festas, os que a gente sentia com as comidas. Eu sempre fiquei incomodada com o peso das nozes, castanhas, milhares de doces e todo aquele creme de leite nas comidas – porque eu sentia como uma ameaça, como um comer errado (e eu sofria, com medo, por acreditar que isso existia).  Já a minha irmã tem um paladar muito restritivo, e o Natal incomodava porque as comidas não pareciam gostosas – ela detesta tudo que é cremoso, tem um leque bem pequeno de coisas que come e não é de experimentar coisas novas. A gente gostava de falar que quando a gente fosse fazer o Natal a gente ia fazer salada de alface com tomate, que era a coisa mais simples e prosaica que a gente conseguia imaginar – e ia ser tão exótico que era capaz das pessoas acharem o máximo.

Estou me lembrando dessa história porque este ano sou eu quem vou ser a anfitriã. E embora eu saiba que gosto das provisoriedades, tenha feito as pazes com o meu medo de “comidas erradas”, e não pense naquela fatídica ideia do alface com tomate, acho que tenho coisas a propor.

decorations-wreath-x

_____

Teve um ano que passei o Natal em Portugal porque estava morando por lá.

Por mais que já frequentasse feiras há anos, as pessoas que vendiam nesses lugares na verdade compravam em entrepostos (como os CEASA ou o CEAGESP). Meu ano em Portugal foi o primeiro em que tive um contato regular com pessoas que plantam. Eu comecei a comprar das senhorinhas que vinham todos os sábados dos conselhos nos arredores de Coimbra pra vender no Mercado Municipal.

Eu me lembro muito bem da sucessão de frutas daquele ano, que eu ainda não conhecia como acontecia: as uvas e a vindima acontecendo no alto do verão (em julho), depois no finzinho dele vinham os figos e as ameixas. O outono trazia os caquis (que lá se chamam diospiros), e o inverno era uma estação que só tinha maçã. Mas além das maçãs, eu fiquei muito surpresa quando vi as senhorinhas vendendo as mesmas uvas, figos e ameixas das estações passadas. É que à altura de dezembro elas estavam perfeitamente secas.

Naquele ano no meu aniversário – que é em novembro – eu passei em uma festa numa vila de pouco mais de 3mil habitantes chamada Marvão, que fica na divisa com a Espanha. Era a Feira da Castanha (portuguesa), que celebrava a colheita das castanhas assando toneladas delas que são servidas junto com vinho durante a festividade. No meio do caminho até chegar à cidade, eu vi pessoas catando castanhas dos castanheiros que ficam na beira da estrada – e eu mesma cheguei a descer e pegar uma castanha, olhar a árvore e o invólucro com espinhos que guardava as castanhas. Nunca tinha imaginado que era assim.

As ruas de Coimbra, por volta dessa época, também tinham cheiro de castanha assada, e todas as terças e quintas a noite, quando voltava das minhas aulas de tapeçaria arraiolo, eu costumava comprar um pacotinho fumegante que esquentavam minhas mãos já mesmo antes de chegar.

Todas essas coisas – as frutas secas, as castanhas portuguesas, as taças de vinho – faziam muito sentido no Natal daquele lugar. São as coisas da época. E é compreensível que uma parte dos imigrantes que pra cá vieram estivessem tentando manter as tradições que eles tinham na memória. Eu, que de certa forma também sou migrante, quando estou com saudades de casa continuo pensando ou assando pães de queijo, e faço muitos malabarismos pra que eles saiam da forma como eles me parecem adequados apesar de não ter direito os ingredientes aqui.

f5859840c213322ad47e44203f2ce3eb

Mas a tradição não é uma coisa estática. Ela é esse jogo entre uma memória e o agora onde ela é revivida. Sem o agora, a memória não consegue ganhar forma. E por isso mesmo toda tradição é também uma recriação.

Uma coisa que fica somente congelada no tempo é a definição mais tristonha do que significa ser uma peça de museu. Quando trazidas à vida, elas precisam ganhar as cores do dia na hora de serem reencenadas senão correm o risco de se verem como um cacareco empoeirado em um canto escuro.

Esses legados são, portanto, uma invenção. Somos nós que arbitrariamente escolhemos um determinado momento no tempo e guardamos ele numa caixinha, pelas razões mais variadas, e chamamos a esses pedacinhos reencenados de tradição.

Entendo que muita gente se apegue ao que a gente reconhece como comida tradicional de Natal – as uvas passas, as castanhas, grandes peças assadas de carne e pratos com especiarias quentes como canela, cravo e noz moscada – mas também é preciso reconhecer uma série de atualizações que aos poucos já foram sendo feitas.

Nosso Natal acontece no alto do verão – e claro, essa coisa da gente ter tudo no supermercado o ano todo torna muito difícil da gente reconhecer o que é mesmo que a gente tem nessa época além do calor, que é bem evidente. E eu não tô falando de pegar aquelas listas imensas e frias de frutas e legumes da época, porque pra uma coisa fazer sentido você precisa aprender isso com o coração (saber de cor, afinal, é isso). Isso a gente não sabe mais.

O verão é a própria definição da fartura. Dia 23 de dezembro, quando acontece nosso solstício de verão, é a culminação do dia mais longo do ano, com sol pleno que alimenta todas as plantas pra fazer dar frutos as melhores coisas. É a época de muitas frutas frescas, de manga, de coco, caju, uva e todas as frutas tropicais regionais que você imaginar. Os dias são quentes, pedem coisas refrescantes – no copo e na própria vida.

E nós moradores dos trópicos, apesar dos vários enfeites de neve, até que reconhecemos um pouquinhos disso. Tomamos mais cerveja do que vinho. Manjar de coco é bastante aceitável como uma sobremesa tradicional natalina. E também costumamos ter saladas e outros pratos leves na ceia.

Mas sempre é possível se lembrar dessa provisoriedade e do espírito criativo que sem querer a tradição evoca e tentar criar mais um pouquinho.

Talvez nada disso que estou contando sobre o descompasso entre o nosso clima e as nossas festas seja uma grande novidade pra você. Mas nós podemos reconhecer o descompasso, e ainda assim não saber direito o que a gente faz com esse entendimento. Nem sempre sabemos agir sobre as coisas que sabemos.  A ação é aonde os coisas embolam porque envolve lidar com o desconhecido e o desconforto que isso causa, remar contra a maré e criar uma coisa nova. Essa história que eu vivi em Portugal já tem 7 anos. E o que eu fui capaz de mudar em relação aos meus próprios Natais? Muito pouco. Por várias razões: porque eu não tenho controle sobre o que vai acontecer numa festa coletiva, porque eu tenho enfeites lindos de patchwork que minha sogra fez comigo que tem pinheiros e bonecos de neve e eu não pretendo jogá-los fora, porque nem sempre fica claro pra mim como traduzir em imagens o que é um Natal tropical – apesar de ter vivido tantos deles.

Ouvir ideias repetidamente serve pra que a gente vá criando, devagarzinho, um novo lugar de conforto. Serve pra gente ir criando repertório, cultivando ideias, reconhecendo que não estamos sozinhos, e aos pouquinhos, deixar que as mudanças ganhem corpo e aconteçam. Revoluções são tentadoras porque parecem quebrar o contato com o velho e abrir de vez a coisa nova, como um ano que acaba numa explosão se fogos, mas a matéria do dia-a-dia de que somos feitos é das pequenezas – e o ano começa de novo, na mesma cadência. É o sutil que vai tecendo a vida cotidiana, que é repetitiva e por isso pode parecer idêntica, mas nunca é a mesma coisa. A mudança é a natureza da vida. E são essas mudanças sutis que fazem verdadeiramente as revoluções possíveis.

0074fa7b18c22562a196ea95379078f4

________

Este post foi originalmente enviado na minha newsletter. As fotos que ilustraram essa edição são parte de uma curadoria de imagens de Natal Tropical que fiz (e seguirei fazendo) no Pinterest. Decoração natalina é uma das coisas que mais brinca com a transitoriedade e a impermanência. Porque não usar o que tem em volta da gente pra criar coisas efêmeras, que usem os elementos naturais que estão na estação? E não estou sozinha: Guirlanda de flores e decoração tropical são tendências de procura na rede. Não é pecado enfeitar com pinheiros e bonecos de neve, mas vasculha essas pastas, joga outros termos no pinterest e principalmente não esquece de olhar pra fora: o que tem aí em volta à rodo que representa essa época pra você?

E por fim, separei algumas sugestões diferentes, com coisas da época, pra você considerar servir nesse Natal:

De entrada, que tal uma caponata de umbigo de banana? As berinjelas também estão na época, mas no Natal você pode preservar a tradição de ser ousado e tentar umas coisas novas pra impressionar os convidados.

Duas saladas: essa salada de manga com pimenta rosa e vinagre balsâmico é fresquinha, colorida, e tudo tá na época. As aroeiras, que são tão comuns na arborização urbana, estão carregadíssimas de bolinhas vermelhas nessa época, já reparou? (aroeira tem um visual muito natalino, ótimo pra decorar também hein). E a segunda é de batata yacon com creme de gorgonzola e é o que estou pensando, entre outras coisas, de servir aqui em casa.

Nas  bebidas, que tal impressionar com um refrigerante caseiro de gengibre? Gaseificado naturalmente, gelado, refrescante e se você deixar uns dias a mais fermentando fica leeeeevemente alcoólico! Se você nunca fez e se sente inseguro, ainda dá tempo de você ensaiar pra estar tudo certo no dia. Outra bebida é essa água aromatizada com flores de agrião e especiarias. Não é tão simples encontrar agrião florido pra vender, embora seja mais ou menos a essa altura que as flores saiam, mas se você encontrar é simples de se fazer. E se você não fizer essa, pode se inspirar e inventar outras águas aromatizadas, que acalmam o estômago e são um mimo. Que tal com flores de manjericão, de alecrim, ou capuchinhas?

E essa sobremesa é um truque velho, mas sempre vale a pena lembrar: o sorvete de banana mais fácil do mundo (e você pode servir com panetone, biscoitos e outras coisinhas crocantes). A receita do post é do sorvete básico, mas o meu plano neste ano é bater as bananas com pêssegos e manga (ambos estão na estação) e um pouquinho de cardamomo, que dá um tom bem mais refrescante e saboroso. Você já pode deixar tudo congelado picado ou bater com uma boa antecedência (o que também é uma coisa boa pra quem está cuidando das comidas da festa).

Bom preparativos de Natal!

fundo

________

Pra receber as próximas newsletters com textos como esse no seu email, assine neste link aqui