Para fazer as pazes com a cozinha

[Cartas que escrevi na cozinha #1]

Tenho uma relação bem conturbada com cozinha por ela ser algo que nos é empurrado, cheio de regras e tal, sabe? Tenho começado a encontrar um pouco de prazer ao cozinhar e seria interessante refletir sobre. Eu rejeitei demais esse mundo. Me sentia diminuída quando ele me envolvia. Pra nós é obrigação, pra ‘eles’ é diversão, elogios e tudo mais, né? Eu odiei artesanato e cozinhar por isso. Agora passei a questionar os ódios porque sinto que no meu caso tem misoginia internalizada no meio. Independente de como você vê, você sabe que a sociedade vê de outra forma. T., 28 anos.

T.,

Tem uma frase famosa da Virginia Woolf que sempre circula por aí que diz que “o primeiro dever de uma mulher escritora é matar o anjo do lar”. Lembrei dessa frase porque ela diz muito dessa nossa misoginia internalizada que você falou. A primeira vez que eu a li assim, solta, e fora do contexto, pensei que a Virginia estivesse falando sobre nossa disposição para cuidar da casa — a disposição em sermos o tal “anjo do lar”. E que pra sermos qualquer outra coisa que não o tal “anjo”— como escritoras — precisaríamos aprender a deixar de lado as tarefas de cuidado que nos exigem em uma casa, e nos dedicarmos a ser o que quisermos.

Só depois foi que eu entendi que quando a Virginia escreveu esse ensaio Profissões para mulheres e outros artigos feministas, o tal que tem essa frase, ela estava querendo dizer uma coisa bem diferente. Anjo do lar é essa vozinha interna que nos diz que uma mulher deve ser como um anjo para os homens, procurando sempre agradá-los, não contrariá-los:

“Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido falar dela — talvez não saibam o que quero dizer com o ‘Anjo do Lar’. Vou tentar resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. (…) Em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo — nem preciso dizer — ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza — enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias (…) toda casa tinha seu Anjo. E, quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. (…) Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: ‘Querida, você é uma moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura.” (Virginia Woolf, Profissões para mulheres e outros ensaios feministas)

Ela escolheu chamar essa vozinha de Anjo do lar fazendo referência a um poema que tinha esse título, e que despejava toda essa expectativa de pureza sobre nós. E no contexto em que o poema original foi escrito, a gente tinha muito mais dificuldade de ocupar outros espaços que não o doméstico, e por isso o anjo não era de qualquer lugar, mas “do lar”. Era um poema de um autor chamado Coventry Patmore, um poeta do século XIX, que felizmente eu nunca nem ouvi falar (ao contrário da Virginia).

Pensei nessa história porque, assim como tive uma impressão inicial equivocada da frase, a gente confunde querer se livrar da submissão com querer se livrar das atividades que as mulheres vêm historicamente fazendo ao longo do tempo. E uma coisa é muito diferente da outra.

A minha relação com a cozinha também sempre foi cheia de altos e baixos ao longo do tempo. Eu comecei a cozinhar ainda adolescente. Morava numa casa só de mulheres — minha mãe, eu e minha irmã — e fui assumindo a tarefa das compras e o preparo das refeições por um motivo não muito agradável: eu queria controlar o que tinha na comida. Queria saber quantas colheres de óleo iam nas coisas, escolher os legumes menos calóricos pra compor o cardápio do dia, garantir que teriam coisas que eu me permitiria comer diariamente. Acho que você pode imaginar.

Quando eu penso sobre como comecei a cozinhar, fico cheia de constrangimento. Não é exatamente uma história que sinto vontade de contar — e contraria tudo que escrevo sobre o quanto é importante ter uma relação mais fluida, sem tanta regra com a comida — mas é preciso fazer as pazes também com minha história e com meu impulso inicial.

Olhando hoje, vejo que eu gostava muito de ter aquela tarefa na minha casa, que sempre foi bastante desorganizada. Percebi que cozinhar era um jeito interessante de colocar ordem, de ter um pouco de planejamento e de estabelecer horários(os das refeições, pelo menos) e um espaço pra comer. Cozinhar pode ter começado como um jeito de ter controle, mas, no fundo, o que a adolescente-eu ganhou foi um pouco de voz e autonomia, porque a desordem e o improviso nunca foram muito o meu jeito. Quando assumi a tarefa de cozinhar, de certa forma, também passei a impor à minha maneira e me senti muito mais parte ativa do meu entorno. Eu me sentia útil e— estou me dando conta agora — me sentia, já naquela época, muito criativa dentro da cozinha. Estava criando meu jeito de estar no mundo.

Tudo que estou te contando é muito diferente de se associar o cozinhar com servidão, submissão.

Entendo perfeitamente quando uma mulher enche a boca pra dizer que nunca nem fritou um ovo. Muitas estão rejeitando o tempo em que as mulheres eram obrigadas a fritar os ovos e todas as outras comidas, e dizendo de um jeito torto: comigo não. E entendo porque eu também tenho profundo pavor desse tempo e de tudo que ainda me vejo obrigada a fazer pelas mesmas razões daquelas mulheres.

Só que a gente recebe tanta rejeição nessa vida, que acaba sendo muito mais produtivo rejeitar as coisas com um endereço certo. Fazer comida é uma coisa. Ser obrigada a fazer comida, outra. Não ser valorizada por fazer essa obrigação, uma outra ainda, e muito ruim.

Quando penso em todas as mulheres da história que tiveram que cuidar dessa tarefa, não sinto raiva, mas uma certa ternura por elas. Embora continuemos a reconhecer muito pouco esse esforço, há qualquer coisa de muito humano em cozinhar. Fazer comida é algo que afeta profundamente as pessoas em volta porque é algo que precisamos diariamente. E reconhecer a grandeza de se fazer comida tem um imenso valor. A gente não precisa ter inventado foguete ou pintado o melhor quadro de todos os tempos pra ser relevante (muito embora sim, a gente tenha também feito várias dessas coisas). Fazer comida também é muito importante. Repensar nosso fazer e a forma como a gente se relaciona com quem faz a nossa comida é um passo até para fazer com que essa tarefa seja um dia remunerada. Dar valor ao ato de cozinhar também é contrariar toda a expectativa machista de que uma mulher nunca produziu nada de importante na história. Reconhecer todos aqueles ovos fritos e aprender a fritá-los é uma espécie de reverência a todas essas mulheres.

Esse é um esforço que preciso fazer cotidianamente para não me sentir muito triste por ter uma habilidade e um interesse que julgo tão pouco reconhecidos. Preciso fazer um esforço também para me lembrar de que o problema não é comigo, quase todas as vezes. Não-é-co-mi-go, eu, pessoa. Um monte de mulheres passa pelos mesmos problemas: pela falta de valorização, pelo cerceamento das suas inclinações e curiosidades e todas essas coisas, que nem eu e você.

Talvez soe muito pequeno, ou mesmo inútil, o meu esforço imaginativo. E eu vou te dizer que, ainda assim, não é fácil. Então T., eu entendo você se sentir diminuída quando cozinhar aparece na sua vida — e é preciso comer, por isso cozinhar bate um monte de vez na nossa porta. Mas acho que quando você me escreveu, estava falando de algo além da necessidade ou da obrigação de cozinhar (sobre isso podemos conversar outro dia), mas de se permitir ter interesse, gosto e até mesmo afeto pela tarefa.

Não ajuda muito que as reações sobre o fato de que gosto de cozinhar sejam sempre muito mornas. Como se fosse coisa corriqueira, comum, que se tivesse tanto interesse assim por cozinha. Eu me sinto a mais óbvia das criaturas. Quando apagam que gostar de cozinhar seja uma inclinação possível dentre tantas outras esse é o único sentimento que me vem: eu sou invisível. Estou fazendo e gostando apenas do que uma mulher deveria fazer. Talvez devesse tentar aumentar meus horizontes, talvez eu esteja meio errada mesmo.

A questão é que depois que passa esse mal-estar, volto a enxergar que é extraordinário fazer uma boa comida tanto quanto construir um robô, publicar um artigo científico ou escrever uma história tocante. Todas são coisas importantes que afetam as pessoas à volta. A errada não sou eu, mas o mundo que dá pesos diferentes a essas habilidades e, principalmente, que atrela o meu valor como pessoa ao que eu sou capaz de fazer de um jeito bem arbitrário.

No fundo, nessa perspectiva, uma mulher gostar de qualquer coisa nem é algo que importa. Tanto faz se é coisa “de menina” ou “de menino” (se essas categorias existissem). Em ambos os casos ou estamos “fazendo bem porque somos mulheres” ou estamos “fazendo mal porque somos mulheres”. E em todos eles, somos invisíveis como sujeito que tem vontades, desejos, disponibilidades, afinidades. Então, se tanto faz, tudo o que me resta é seguir cultivando as minhas habilidades porque é a partir delas que consigo mostrar que existo.

Tem uma newsletter da renata correa que termina com uma frase que parece uma espécie de atualização engraçadinha da frase da Virginia Woolf e é um ótimo mantra pra vida: façam a porra que quiserem. Você não precisa justificar nada para ninguém. Você não precisa gostar nem experimentar fazer nada na cozinha se você tiver essa escolha. Mas se é um desejo seu, tente fazer as pazes com a cozinha, com as mulheres que cozinharam ao longo da história e com as mulheres que continuam cozinhando e ensinando homens e mulheres a cozinhar. Permita-se amar o que outras mulheres fizeram, não só o que o anjo assoprar que é digno de ser amado. Você está abrindo caminho para que outras mulheres que gostam seja lá do que for sigam experimentando, fazendo, se divertindo. É essa disposição que mantém aberto o horizonte de experiências possíveis, para todas nós.

Esta carta foi originalmente publicada na Mulheres que escrevem, em 21 de março de 2018.