Porque não uso mais o termo PANC

Feijão de corda numa banca de rua do mercado ver-o-pes

Se você me segue a algum tempo nas redes sociais, talvez já tenha notado que parei de usar o termo PANC pra falar de plantas comestíveis menos comuns há algum tempo. Não é que eu tenha parado de falar delas, nem que não seja mais uma entusiasta – eu continuo escrevendo, consumindo, e aprendendo sobre plantas, as de comer e também as que não são, mas o uso do termo tem me parecido muito incômodo.

Um tuite sobre a erva couvinha sem usar o termo PANC. clique na imagem para ir até o tuiter ler
Um tuite recente meu sobre erva couvinha (Porophyllum ruderale) sem mencionar que ela pode ser entendida como uma PANC. Pra ler a sequência, clique aqui.

Eu já tinha escrito anteriormente sobre como as PANC tem se tornado um fetiche, especialmente no contexto dos grandes centros urbanos, com preços inflados e pouco reflexo do que de fato é abundante naquele local. É o jenipapo sendo procurado no sul do país, lugar que ele não cresce, ou tentativas de cultivar jambu, uma plantinha afeita a alagados, no inverno seco do sudeste, ou ainda caixinhas com porções mínimas de mini pepinos que nascem espontâneos e quase sem demandar nenhum outro cuidado, entre outros.

A questão que eu levantava é que essa fetichização, esse querer experimentar um ingrediente novo qualquer porque você ouviu falar, é uma subversão da proposta de se olhar e descobrir a abundância de plantas específicas do local onde você mora, ainda que elas não sejam corriqueiras no mercado por hora.

Procurar por uma PANC no lugar de olhar pro que você tem à sua volta não é muito diferente de desejar azeitonas ou sementes de papoula que não crescem aqui no Brasil. E não há problemas em também desejar essas coisas, mas isso é só mais do mesmo do sistema, que adora estimular uma percepção de escassez. E, por isso, e porque nos centros urbanos é muito fácil você não se ancorar em nennhuma vivência do que é natural e farto naquele contexto, PANC começou a se tornar uma coisa a ser explorada. Ao criar uma sensação de uniformidade à partir do guarda-chuvas genérico PANC, se tornou mais fácil a captura mercadológica desses ingredientes, e a consequência é a elitização no lugar da popularização que se pretendia no começo.

OS PROBLEMAS DA UNIFORMIZAÇÃO

A industrialização promovida pelo capital funciona criando uniformizações. No lugar de uma produção manufatureira individualizada, os bens são produzidos em volume com um custo mais baixo, mas sem a possibilidade de autonomia ou customização que possa atender às necessidades de diferentes pessoas – que na verdade são vistos como meros consumidores ou usuários. Esse processo, no entanto, não está restrito apenas à esteira de produção, mas também se dissemina por outros âmbitos, como parte da cultura. Isso significa que a uniformidade está pra todo lado: nas prateleiras do supermercado, mas também na forma como tentamos ler as pessoas, no que entendemos por ser bem-sucedido, nas formas de se levar a vida.

O processo de uniformização na indústria tem um propósito. Ao simplificar o processo de produção, ele tenta aumentar o controle sobre a produção, e com isso diminuir custos. Mas isso também tem consequências. A ativista ambiental Vandana Shiva fala muito bem disso no livro Monoculturas da mente (atualmente esgotado), e explica que essa lógica não produz mais, ela apenas controla mais o processo produtivo, mas com perdas muito significativas da auto-organização e diversidade da vida, que se arrastam pra outros espaços das nossas vivências.

Tentar agrupar um conjunto muito grande de plantas completamente diversas entre si, de localidades e biomas tão distintos, tem uma função, assim como no processo de industrialização. Criar o termo PANC foi fundamental pra chamar a atenção para esse grupo de vegetais que, por conta da uniformidade alimentar promovida pelo agronegócio e o capital, não estão sendo mais frequentemente usados na alimentação humana. Ao agrupar, foi mais fácil perceber que nós não estamos falando de pouca coisa, que são muitos os grupos sociais que faziam uso dessas plantas, e que nós estamos abrindo mão de abundância em todos os lugares.

Mas ao uniformizar um conjunto muito diverso de plantas dentro de um acrônimo, isso também facilitou que essas plantas pudessem deixar de ser vistas na sua singularidade e na sua relação com o entorno, pra serem lidas sempre a partir desse único rótulo: Planta Alimentícia Não Convencional. E não convencional, num mundo de uniformidades, é necessariamente sinônimo de rara, exótica, e por consequência também cara, o que desvirtua completamente o que se queria chamar a atenção.

O termo transformou até mesmo percepção que se tem sobre algumas dessas verduras regionais que ainda tem uma exploração comercial consistente em locais específicos – como a ora-pro-nobis em Minas Gerais, ou o cariru no Pará – que progressivamente ganharam um estatus de produtos diferenciados mesmo nesses locais. São ingredientes que apesar de estarem dentro de um espectro de convencionalidade em regiões circunscritas, não tem uso comercial ainda em outras localidades. Mas ao serem todos esses ingredientes revestidos pelo termo PANC, que marca a não convencionalidade, ganham uma aura de raridade que se transforma em abuso de preços, gourmetização e todas as coisas na contramão da soberania alimentar que estamos acostumados a ver o mercado fazer na cultura alimentar.

frutas de gabiroba do cerrado (compomansia adamanthium)
Gabiroba do cerrado (Campomanesia adamanthium). Raras no mercado, mas fácil de encontrar andando no meio do mato perto de Belo Horizonte (mar/2021)

O uso do termo PANC tem me incomodado inclusive além dessa questão. Todo uso de acrônimos e siglas carregam em si uma menor acessibilidade, já que pra você entender o que você está falando é preciso conhecer a que a sigla se refere. Diferente de uma palavra que você desconhece o significado, e que muitas vezes você consegue inferir dentro do contexto linguístico de uma frase, a sigla não permite essa relação. Pode parecer pequeno, mas não é raro que uma pessoa não saiba sobre o que se está falando quando dizemos PANC, e nem sempre é confortável fazer a pergunta do que significa pro interlocutor. Assim, a coisa vira uma conversa pra iniciados e entendidos.

Eu me pergunto se esse papel de despertar da consciência da falta de biodiversidade no prato já não foi suficientemente cumprido pra pelo menos um grupo de pessoas, e agora a disseminação dessa ideia precisa acontecer por outras estratégias. No plural.

Tenho optado por marcar essa não convencionalidade fora da sigla, chamando atenção pro nome popular e da espécie de que estou fazendo referência. Se vou falar da guasca, uso o nome dela, falo do sabor e do uso (um coentro suave com cogumelo, usado como erva aromática), e posso marcar que é um ingrediente usado em determinados lugares (na Colômbia), mas desvalorizado, visto como mato, ou de uso menos comum em outros lugares (no Brasil). É menos sintético do que o acrônimo, mas também é mais acessível, completo, informativo e emocional do que ele. É diverso. Eu preciso realmente conhecer a planta de que estou falando, e cada uma delas me faz contar uma história e escolher um caminho pra apresentar ela. Mas me parece que essas possibilidades são mais ricas do que o acrônimo, e permitem que nem mesmo se precise fazer referência a ele.

Parar de usar a sigla pra falar simplesmente de cada uma das plantas, além de ficar mais fácil perceber a diversidade, também me parece tornar mais difícil se apropriar delas como fetiche, já que você tira parte do caráter exótico e de escassez que a sigla sem querer acabou cultivando. Essa estratégia, no entanto, não termina com o fato de que as grandes cidades ainda são espaços de muito pouco contato com a produção, de que o ataque à soberania alimentar continua avançando, e de que nós precisamos recuperar esses saberes se quisermos construir uma outra relação com a comida e com a vida. Mas é uma estratégia diferente, que não parte da premissa daquilo que mais queremos combater. E creio que num mundo mais diverso, diferentes estratégias são muito bem-vindas.

______________________________

Apoie a internet que você quer ver florescer. Se você gosta e acha importante o meu trabalho, considere apoiar financeiramente o OutraCozinha.