Aplicativos de identificação de plantas funcionam?

Usando aplicativos de identificação de plantas

Por conta do meu interesse por naturalismo, que me faz observar, fotografar e estudar plantas, eu sempre estou às voltas com as incertezas. Se uma planta me chama a atenção por qualquer coisa, eu consigo tranquilamente conviver por meses com um não saber até que alguma pista do que ela é apareça. Eu de fato não me incomodo com isso. Parte da graça é treinar meu olhar pra perceber as pequenas pistas que possam me levar progressivamente a uma resposta, como já contei quando escrevi sobre o processo de identificação de plantas amador em outra postagem.

Mas pra muita gente, a resposta pra pergunta “que planta é essa?” costuma estar na sugestão de perguntar pros aplicativos de identificação. Já perdi as contas de quantas vezes recebi esse conselho. Entendo a boa intenção, mas confesso que também fico um pouco espantada com a ingenuidade alheia de que eles seriam assim tão resolutivos. Embora eles tenham funcionalidade e possam ser utéis em alguns contextos, é preciso entender as limitações do que eles fazem. Não é preciso ser botânico pra poder identificar plantas – eu sempre digo isso -, mas isso não significa que a atividade não exija atenção e cuidado, com tecnologia ou não.

Por isso, resolvi reunir algumas informações sobre esses aplicativos e as suas limitações, pra você poder usar melhor esse recurso. E também pra que você possa desenvolver um olhar mais atento pra identificar plantas ao seu redor, independente do uso deles:

Entrando no meio do mato e aprendendo a ler a paisagem em volta
Caminhada na borda do mato, no Parque da Serra do Curral, em Belo Horizonte. Vamos?

O BANCO DE DADOS DOS APLICATIVOS


A primeira coisa que é preciso ficar claro antes de você começar a tirar fotos e pedir a identificação pro aplicativo é como a maioria deles funciona. PlantNet, PlantSnap, GoogleLens, e INaturalist, pra ficarmos nos aplicativos mais populares, fazem o reconhecimento das imagens que você envia usando um banco de dados de imagens que é colaborativo, feito a partir das fotos que outros usuários publicaram e referendaram dizendo que a identificação está correta.

A inteligência colaborativa é interessante, e permite que a gente acesse uma quantidade muito grande de dados num tempo pequeno, mas ela também tem problemas. No caso dos aplicativos, dois são muito significativos e precisam ser levados em consideração na hora de usar.

O primeiro é que assim como o smartphone, o aplicativo é muito mais comum entre usuários urbanos, moradores de grandes centros, de países ricos, e entre pessoas de países que tenham uma tradição cultural de naturalismo amador forte (que não é o caso do Brasil). E o banco de dados dele costuma refletir isso. Por isso, identificar plantas ornamentais – essas vendidas massivamente em floricultura -, ou árvores comuns usadas na arborização urbana dos grandes centros, ou plantas que fazem parte da flora de países temperados costuma ser muito mais fácil do que outros tipos de vegetais. Fotos de plantas de biomas brasileiros específicos como cerrado, mata atlântica, caatinga, são extremamente limitadas, embora pra nós essas plantas sejam razoavelmente familiares.

Pra se ter uma ideia: o PlantSnap afirma que tem cerca de 10mil plantas no seu banco de dados. O PlantNet conta na descrição do aplicativo que seu banco de dados é o dobro disso, 20mil plantas. Mas ainda assim, são números muito pequenos perto da estimativa de 400.000 espécies de plantas que temos no mundo, feita pelo KewGarden. É um número pequeno mesmo se considerarmos só as espécies de plantas catalogadas que nós temos no Brasil, que são próximas de 50mil. Dessas, pelo menos a metade são consideradas endêmicas – ou seja, só existem no Brasil mesmo, e por isso dificilmente farão parte do catálogo desses aplicativos. Esses números, por si só, já colocam em perspectiva o quão restrito é o banco de dados deles.

O segundo problema dos bancos de dados colaborativos é que a resposta de se uma planta é mesmo aquela planta pode ser dada por uma pessoa muito leiga, que não tem a menor ideia de que planta realmente se trata. Se o aplicativo diz que uma planta é uma uma laranjeira quando na verdade ela é uma ora-pro-nobis, mas a pessoa não consegue ver diferença entre as duas e acredita no que o aplicativo disse, ela pode validar a resposta nele. A imagem identificada, então, vai passar a fazer parte do banco de dados e ser mostrada pra outros usuários. Isso significa que na próxima vez que alguém tentar identificar uma ora-pro-nobis, vai ser mais provável que receba como resposta que se trata de uma laranjeira. Isso vai induzir os próximos usuários a erro. Não é raro também você abrir uma planta identificada no aplicativo e perceber que existem fotos de plantas diferentes listadas como plantas idênticas.

Interface do aplicativo Inaturalist
Interface do aplicativo INaturalist. A foto que pedi pra identificar é de uma ora-pro-nobis, que tenho em casa. Repare que ele tem “quase certeza” que é uma rutácea do tipo limoeiro ou laranjeira. Mas está enganado.

Outros bancos de dados, como por exemplo, o do INaturalist, são um pouco mais criteriosos. Há espaço pra discussão com outros usuários de por que uma planta é de determinada família ou gênero, o que é muito menos taxativo do que cravar uma espécie, que é sempre um negócio mais arriscado. Também lá eles deixam mais explícitas essas informações do lugar onde a planta foi avistada, o que ajuda a evitar algumas confusões bobas, já que muitas plantas só ocorrem em determinadas áreas. Mas ainda assim é preciso cuidado. No INaturalist a minha foto de ora-pro-nobis é identificada automaticamente como se fosse uma rutacea do tipo laranjeira. Elas não são nem da mesma família – a ora-pro-nobis é uma cactácea. Mas o aplicativo confunde não porque não conhece a ora-pro-nobis, já que ela aparece ali na terceira sugestão (é a Pereskia ali). É que identificar é delicado mesmo.

O QUE FOTOGRAFAR

Outro problema comum que percebo nos aplicativos é que eles não são muito cuidadosos em educar o usuário sobre o que é preciso fotografar pra identicar uma planta corretamente. Eu percebo que essa é uma dificuldade bastante comum das pessoas. Recebo muitas fotos nas redes sociais de folhas soltas, do fruto isolado, ou de um broto que ainda só tem os cotilédones. E a não ser que seja algo muito comum, é praticamente impossível ter alguma ideia só com essas pistas.

O PlantNet, por exemplo, oferece na interface espaços distintos pro usuário colocar fotos de partes diferentes da planta – folhas, flores, tronco, frutos. Mas é uma sugestão apenas intuitiva, e não me parece o suficiente pro usuário entender a importância de procurar certas coisas, nem de fazer múltiplas fotos de uma mesma planta usando partes diferentes em close pra uma identificação certinha.

As flores, na maioria das vezes, são uma das partes mais importantes usadas pelos biólogos e taxonomistas pra conseguir apontar ao menos uma família. Elas costumam ser bastante características, e você deve procurar fotografar cuidadosamente numa planta que deseja identificar.

Além disso, é bom entender que a folha isolada é uma informação pobre. A forma como ela se distribui na planta costuma ser tão ou mais relevante do que o formato dela. Você não precisa dominar o vocabulário descritivo de filotaxia – que é como chamamos o padrão de distribuição das folhas ao longo do caule das plantas -, mas você precisa saber que é isso que você deveria fotografar se quiser identificar.

Maracujá na serra do curral
Fotografe o modo como as folhas se dispõe no caule em vez da folha isolada. Essa daqui, encontrada no Parque da Serra do Curral, é muito provavelmente do gênero Passiflorae, um maracujazinho do mato. A foto mostra bem como ela tem folhas trilobadas (com 3 lóbulos), alternas (que é quando só há uma folha em cada nó) e espiraladas (quando as folhas encontram-se dispostas em mais de um plano, normalmente formando uma espiral).

Outra coisa que quando presente merece atenção são os frutos no caso das angiospermas. Fotografe a forma como eles aparecem dispostos na planta, mas também abertos, cortados longitudinalmente, com as sementes expostas. Isso pode ser importante se você tiver interesse numa resposta mais acurada.

LENDO AS RESPOSTAS QUE O APLICATIVO DEVOLVE

Os aplicativos não me parecem suficientemente claros em comunicar que a primeira resposta mostrada não é a resposta correta, mas uma resposta provável dentre várias outras. E é preciso ter em mente também que o aplicativo sempre vai tentar te dar uma resposta aproximada. Ele dificilmente retorna um sincero “não sei”, que em muitos casos seria muito mais útil. E é nessas que você pode achar que tem uma resposta, mas ela não é nem um pouco próxima da realidade.

O Inaturalist, por exemplo, costuma avisar nas respostas se o que ele te retorna está mais certeiro ou se é mesmo um chute. Mas isso não é garantia – ele tinha uma boa certeza que a ora-pro-nobis era uma laranjeira. Já o PlantNet te devolve uma lista de plantas, e no lado direito, ele costuma identificar porcentagem de assertividade da resposta. No caso da ora-pro-nobis, por exemplo, ela indica que deve ser a Pereskia aculeata (que é realmente o nome científico da planta), e aponta que tem 90% de chance de certeza. As próximas respostas aparecem com 1% de chance.

As porcentagens no aplicativo
Interface do aplicativo PlantNet, com a foto da minha ora-pro-nobis pra identificação. Repare ali destacado na lateral direita que ele mostra uma porcentagem com a probabilidade de acerto

Já quando coloco a foto dessa frutinha aí embaixo, que encontrei no Parque da Serra do Curral em Belo Horizonte, as respostas começam com 10% de chance. Além de ter o efeito de te fazer relevar as respostas como pouco acuradas, a porcentagem também é um dado importante pra você perceber como não é interessante ficar limitado somente à primeira opção mostrada. Os demais aplicativos (PlantSnap, GoogleLens) nem mesmo costumam indicar isso – e só esse fato já me faz achar eles muito inferiores.

guaraná da serra do curral
Frutinho que fotografei no Parque da Serra do Curral, em Belo Horizonte: possivelmente é um tipo de guaraná da mata atlântica (Paullinia carpopoda) que ainda está com aqueles olhinhos característicos fechados. Mas o aplicativo não sabia bem o que era

Outra coisa que acho pouco valorizada são as famílias mostradas. Identificar a espécie pode ser muito difícil, mas chegar numa família ou num gênero fecha um pouco as possibilidades, e te permite, além de tudo, ir se familiarizando com plantas e características durante o percurso. Quando contei sobre o caso do maracujazinho da flor branca que descobri no meu quintal, ver a flor me fez facilmente dar o palpite de que se tratava do gênero Passiflorae, mas foi o aplicativo quem me deu segurança. E assim eu continuei buscando em artigos científicos até chegar numa resposta.

A flor do maracujazinho misterioso: ela é muito característica, e facilmente fazem a gente identificar o gênero (Passiflorae)

Muitas vezes a melhor coisa a se fazer é olhar as famílias que aparecem ali e ignorar completamente as espécies. Não fique com medo de fazer isso. Essas categorias existem por razões e conseguir colocar uma planta numa determinada família já é um feito e tanto, acredite.

Por fim, não se esqueça de cruzar a informação que você está vendo no aplicativo com outras imagens que você puder encontrar no google. Muitas fotos que fazem parte do banco de dados, como eu disse, são ruins pra se identificar porque o usuário nem sempre sabe o que é importante fotografar, e isso pode mais atrapalhar do que ajudar. Por isso, se o aplicativo te der uma resposta, jogue o nome científico encontrado no google e veja outras imagens. Use o computador ou alguma tela maior se isso for possível. Isso pode te ajudar a colocar em perspectiva o tamanho de frutos, ou o formato das flores, a disposição das folhas no galho, o que te faz ter um pouco mais de certeza que você chegou numa boa resposta.

Por fim, não deixe de considerar o hábito da planta na hora de identificar. Confira se o nome científico encontrado é de uma árvore, um arbusto, uma erva, uma liana (trepadeira), se é uma planta epífita ou aquática, e olhe em seguida a planta que você fotografou. Observe se o tipo vegetal é esse mesmo.

Você também pode verificar no google a área de ocorrência da espécie indicada pelo aplicativo, pra evitar alguns enganos bobos. Se a planta mostrada no aplicativo só ocorre no sudeste asiático, mas você está numa área de vegetação amazônica, as chances dele estar enganado são imensas. São essas checagens que fazem a gente ganhar segurança de que realmente chegou numa resposta que faz algum sentido.

ENTÃO, COMO MELHOR APROVEITAR OS APLICATIVOS?

Os aplicativos podem ser muito úteis quando você não tem ideia de por onde começar a pesquisar. É uma ótima ideia quando você quer sugestões de famílias que possa pesquisar. Com as sugestões que ele dá, por menores que sejam as porcentagens, você tem ao menos por onde começar a sua busca.

Eles também são confiáveis pra imensa maioria das plantas ornamentais comerciais que temos acesso. Algumas das plantas medicinais mais conhecidas, além de ervas aromáticas, costumam ser identificadas com maior facilidade por serem muito usadas.

Muitas das plantas mais comuns consideradas “daninhas” (mas que de daninhas não tem nada), que nascem em meio fio e canteiros na zona urbana, têm uma chance razoável de receberem respostas corretas nos aplicativos. Mas ainda assim, tome cuidado, olhe com desconfiança, siga esses marcadores todos que procurei explicar por aqui.

No caso do INaturalist, acho que vale lembrar que a utilidade vai além da identificação. O aplicativo pode funcionar como um banco de dados de observações naturalistas pessoais, que fica armazenado no seu perfil. Além disso, ele permite um certo intercâmbio com outros naturalistas amadores e profissionais, o que não é possível em outros aplicativos e pode ser do seu interesse.

De toda forma, não desista de tentar entender a paisagem à sua volta, com ou sem o auxílio dos aplicativos. Dar nomes às plantas que convivem conosco muda o nosso olhar sobre como tem vida à nossa volta, mesmo nos lugares mais hostis. É uma atividade que resgata a nossa atenção com uma coisa concreta e tão próxima, mas que frequentemente sabemos tão pouco. E algumas vezes, a atividade de pessoas comuns impacta até nos registros que são feitos na ciência. Eu espero que você possa se divertir e fazer bom uso do que você tiver disponível nas mãos.

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