Quem tem medo de biscoitinhos amanteigados de cerveja?

Existem receitas – como essas de biscoitos amanteigados de cerveja que vou ensinar – que levam muita gordura, e elas têm razão pra isso. Gordura dá sabor, e produz texturas específicas. Adicionar gordura é uma escolha culinária que fazemos pra ter um determinado resultado.

Muitas pessoas não têm esse conhecimento e acham que elas são dispensáveis. O gastrônomo Ruan Felix tem um texto delicioso sobre a importância da gordura na gastronomia vegetal, que vale a pena ler pra entender porque insistir em tirar uma parte das gorduras das receitas nem sempre é uma boa escolha, além de chamar atenção pro uso de óleos de origem vegetal e como eles podem ser usados pra produzir resultados criativos no lugar das gorduras animais (sou sempre favorável a isso, por questões éticas).

Mas não é só uma questão de falta de entendimento que leva as pessoas a tentar alterar essas receitas por conta própria, muitas vezes com resultados que ainda que não sejam desastrosos, resultam em produtos finais relativamente secos ou pouco crocantes, ligeiramente duros ou menos saborosos do que poderiam ser.

Eu recebo muitos emails e comentários de pessoas nas redes sociais tentando “consertar” essas receitas, como a do pão de queijo, tentando diminuir a gordura ou inseguras com medo da textura. Eu já tive essa receita de torta de folha de cenoura copiada e publicada num livro por uma pessoa (que não me creditou no livro mas me marcou no post em que mencionava isso, acredite), em que a única diferença – adivinhem – é a diminuição de quase metade da gordura adicionada. Sinceramente, eu sinto que infelizmente essa pessoa não entende muito – nem de receita, nem de princípios, nem do que essa manobra de diminuir a gordura de tudo sinaliza culturalmente.

Não culpo quem sinta medo de executar receitas com muita gordura. Nós vivemos em um ambiente que nos ensina a ter medo de determinados nutrientes, enquanto aprendemos que outros têm poderes milagrosos. Mas uma coisa que a gente precisa começar a notar é que esse medo distingue muito pouco a diferença entre nutrientes, comida e padrão alimentar. E que ele nunca se dá conta da complexidade da composição dos alimentos, da multiplicidade de efeitos metabólicos sobre todo o organismo, e dos padrões sociais em que os alimentos estão inseridos.

Os nutrientes, dessa forma, aparecem descontextualizados, como se os alimentos em que eles se encontram fosse irrelevante. E deixam de lado também a importância da frequência e o modo como esses alimentos se relacionam com outros, formando o que a gente chama de dietética. Nutrientes, alimentos, e padrões alimentares são três coisas bem diferentes, e não dá pra reduzir tudo a uma coisa só, como argumenta tão bem o pesquisador Gyorgy Scrinis, no livro Nutricionismo.

A gente precisa aprender a reconhecer o que se passa – que a comida caseira, que não é ultraprocessada, tem uma qualidade e produz uma saciedade diferente; que a indústria alimentícia tem interesses, se apropria seletivamente da pesquisa nutricional, e faz afirmações que acentuam as ansiedades pra explorar as necessidades dos consumidores; e que existe prazer em todas as coisas que comemos, não só nas que tem grande quantidade de gordura, e que por isso nem sempre nossa escolha será por elas. Se não reconhecermos esse ambiente nutricentrado e enviesado, vamos ficar reproduzindo continuamente o ecossistema que nos faz ter medo de comidas.

CONHECER PRA FAZER PARTE DO PROCESSO

Pra ajudar a contruir uma relação mais agradável com as gorduras e outros ingredientes, vou explicar como agem cada um dos componentes desse delicado biscoitinho amanteigado, naquele melhor estilo saiba o que você está fazendo, que eu adoro fazer aqui. Assim você pode experimentar essa receita com um envolvimento mais integral, e abraçar o fazer mas também o saber do porquê das coisas, e ver como você se sente.

A receita de biscoitos amanteigados de cerveja é uma daquelas que você não deve negociar as quantidades dos ingredientes, como acontece com quase tudo na parte de confeitaria. Além da farinha, ela leva uma quantidade grande de manteiga porque ela é a responsável por deixar o biscoito crocante, do tipo que dissolve na boca, na proporção exata. Ela também é responsável pelo aroma, já que tende a no momento em que é assada ganhar um sabor ligeiramente amendoado.

Já a cerveja, quando usada em qualquer preparação de confeitaria, é um elemento pra dar sustentação e maciez às massas. Em algumas receitas ela pode agir como um facilitador da fermentação, por causa da carbonatação, mas ao menos nessa receita não é esse o caso. A cerveja também é um limitante pra você não mexer na manteiga: cervejas tendem a fazer com que ingredientes de gordura reduzidas (como margarinas e cremes vegetais) fiquem com aquela aparência “talhada”. Tentar reduzir a gordura é a receita pro fracasso aqui.

O mais importante na hora de fazer é lembrar que quando você se permite comer esse tipo de coisa, as coisas de verdade feitas como devem ser com um prazer sincero e não com aquele prazer culpado, a chance de você se satisfazer e se esquecer dos biscoitos é imensa. Eles são deliciosos, mas não são coisas que você vai querer comer – e muito menos fazer – todo dia. Mas eles te farão feliz enquanto você estiver com eles.

Vou explicar como fazer os biscoitos. Os ingredientes são poucos e simples e um cortador de biscoitos de qualquer formato facilita o trabalho, mas é opcional. Pra quem não tem um, vou explicar também como fazer um formato com as mãos, a partir de uma sequência de fotografias que fiz:

BISCOITOS AMANTEIGADOS DE CERVEJA

500g de farinha de trigo
250g de manteiga
100ml de cerveja
Açúcar pra passar em volta dos biscoitos depois de assados

1. Misture a farinha e a manteiga – de preferência amolecida, para facilitar a integração;
2. Meça a quantidade de cerveja num copo e deixe descansar por 5 minutos antes de acrescentar à receita. Isso vai fazer a espuma diminuir, e soltar um pouco da carbonatação;
3. Acrescente a cerveja. Ela deverá espumar um pouco quando colocada. A função da cerveja numa receita de panificados é dar uma sustentação extra, e uma textura macia. Você pode usar qualquer tipo de cerveja que quiser, mas se quiser acrescentar sabores caramelados, pode tentar alguma do tipo stout. Use as mãos e misture até ficar uniforme;
   

4. Esfarinhe levemente a bancada e abra a massa com um rolo. Faça movimentos do centro para as bordas uma única vez, sem ficar indo e voltando. Desgrude a massa da bancada e posicione ela no sentido inverso, pra abrir um quadrado.
5. Se você tiver cortadores, use sobre a massa aberta e vá colocando em formas. Não é necessário untar, a quantidade farta de manteiga garante que elas vão se soltar;

6. Caso você não tenha cortadores ou queira criar formatos com as mãos, você pode fazer como na sequência de fotos que mostro à seguir. Comece modelando um pequeno tubo, rolando a massa sobre uma superfície, Em seguida, dobre o tubo ao meio e enrole as partes ligando as pontas, formando um formato de 8 ou infinito.

7. Coloque para assar em forno pré-aquecido. 15-20 minutos costumam ser suficientes. O dourado dos biscoitos deve ser o indicativo de que é hora de tirar.
8. Jogue delicadamente os biscoitos recém tirados do forno numa vasilha ou prato com açucar. Ele deverá naturalmente grudar em volta de cada biscoitinho

9. Depois de frios, guarde em um pote tampado, ou ajeite em uma embalagem e dê de presente pra alguém. Ele se conserva bem por cerca de 5 a 7 dias. Aproveite e desfrute de verdade enquanto eles estiverem por aí.

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