Como assar pão em forno doméstico com resultado profissional

pão assar

Pralém do medo que a gente sente de fazer pão pensando que talvez seja muito difícil e trabalhoso, existem algumas dificuldades práticas reais de se fazer pão nas cozinhas que existem hoje. A intimidação que fazer pão evoca em muitas pessoas em parte vem do nosso pouco repertório dessa prática no cotidiano, e das expectativas nem sempre reais que as imagens de pães caseiros na internet acabaram por criar na gente. Abordei essas questões e sugeri alguns caminhos acolhedores num outro post sobre perder o medo de fazer pão. Neste post vim trazer algumas informações técnicas especialmente sobre a parte de assar o pão, que é bastante delicada usando os equipamentos domésticos, mas que é possível de ser feito com o que se tem à mão.

Tradicionalmente, o pão era feito em fornos à lenha, que raramente hoje estão disponíveis especialmente nos ambientes domésticos urbanos. Apesar de ser uma tecnologia antiga, assar pão sem usar um forno à lenha é particulamente mais difícil. Isso acontece porque ele proporciona condições ideais pra fazer o tipo de cozimento que o pão pede. Mas a boa notícia é que entendendo um pouco quais são as condições que um forno à lenha oferece e quais são as dificuldades, dá pra contornar a coisa em outros tipos de fornos que a gente tem, sem a necessidade de muitos apetrechos.

Este post é pra você matar a curiosidade sobre a forma como os fornos (a gás, elétrico, a lenha, de convecção, de lastro) funcionam, e entender as transformações que estão envolvidas no processo de assar um pão. Também é um post pra você conseguir fazer aquela casquinha crocante com o interior bem macio, não importando se o pão foi feito com fermentação natural ou não. Também é útil pra assar pizzas caseiras – que a gente esquece mas são um tipo de pão. Não servem no entanto pra pães ricos – aqueles em que se adiciona ovos e leite no fabrico – nem pães de forma, porque geralmente esses são pães em que uma casquinha macia na verdade é o que é o desejável.

pães assados no forno à lenha

Calor seco e umidade

Um forno à lenha não é só um artefato interessante que permite que você cozinhe mais lento, com o sabor defumado da lenha, que dá um gosto singular pro que você estiver cozinhando. Ele também proporciona um ambiente muito diferente do que um forno de fogão à gás, elétrico ou de convecção oferece. Pra isso a gente precisa entender a lógica de cada um deles.

Todos os fornos cozinham usando um método de cozimento que a gente chama de calor seco. No calor seco do forno, a transmissão do calor acontece por condução. Esse ar aquecido circula dentro do forno a partir de uma corrente de convecção – o ar quente sobe e o frio desce, o que acaba provocando uma circulação de ar. É o ar aquecido nessa corrente que entra em contato com o alimento, fazendo com que várias reações químicas e físicas possam acontecer. O calor seco tende a desidratar o alimento e por isso, qualquer coisa que é feita no forno vai ter um sabor mais intenso: o gosto das coisas depois que a água evapora fica concentrado.

A questão é que no forno à lenha o ar não fica tão seco quanto num forno a gás ou elétrico. Quando a lenha é queimada, mesmo ela tendo passado por um processo de secagem bem feito, ela sempre vai liberar um pouco de umidade pro ambiente. Isso modifica a forma com que as coisas são assadas porque elas tendem a manter a hidratação por mais tempo do que quando assadas usando gás ou uma resistência elétrica como fontes de calor, que não tem nenhuma umidade.

Lenha queimando do forno

Quando o pão vai pro forno, três transformações principais estão acontecendo. O amido está gelatizando, as proteínas estão coagulando e o açucar da superfície está se caramelizando, a partir de uma reação química bem famosa conhecida como reação de Maillard.

O que acontece no forno à lenha é que naturalmente o pão recebe no primeiro momento essa hidratação, e ela retarda o processo de gelatinização do amido. As moléculas de amido tem uma capacidade limitada de absorver água fria. Quando esse amido umedecido é aquecido, isso provoca um rearranjo molecular que faz com que os grânulos incorporem a umidade e mudem de aparência. Essas moléculas de aglutinam – isso é a gelatinização. Essa reação é muito visível quando estamos fazendo tapioca. Quando colocamos a fécula de mandioca hidratada numa frigideira, em poucos minutos ela muda a consistência pra algo gelatinoso e ligado, em seguida ficando prograssivamente mais crocante. O que estamos fazendo com o tapioca é induzir a gelatinização do amido da mandioca.

No pão, essa propriedade dos amidos faz com que a casquinha crocante por fora apareça. Retardar a formação da casquinha faz sentido porque quando o pão é colocado no forno, num primeiro momento ele vai tender a expandir as bolhas de ar por dentro, que foram produzidas durante a fase de fermentação. Depois o pão se estabiliza, as leveduras morrem, e a processo de coagulação das proteínas ganha corpo. A umidade do forno à lenha deixa que esse início aconteça de maneira mais lenta, fazendo com que a perda de água atrase. E o pão, por consequência, fica com um miolo mais macio e aerado.

Num forno elétrico ou à gás, como não existe essa umidade, o que pode ser feito é criar ela de algum jeito pra retardar esse processo de gelatinização. Tem algumas formas de conseguir isso: borrifando água diretamente no pão ou criando vapor dágua dentro do forno. O vapor d’água você consegue produzir, por exemplo, colocando uma forma metálica qualquer dentro do forno enquanto ele pré-aquece, e jogando um copo d’água na temperatura ambiente sobre essa forma. Vai fazer barulho e parte da água vai evaporar imediatamente, criando um ambiente umido bem parecido com o do fogão de lenha. Você pode usar os dois métodos combinados inclusive – o vapor de água e o borrifo sobre o pão. Aqui em casa a gente faz assim.

Se você começar a assar pão com uma frequência alta – uma vez por semana, por exemplo, é o suficiente – tenha em mente que a forma metálica usada pra criar vapor provavelmente vai começar a se danificar e ficar escura e retorcida. Não é um problema, mas talvez seja aconselhado que você separe uma forma velha pra fazer essa função.

Outra forma de conseguir manter o vapor d’água preso no sistema é usando uma panela de ferro fundida com tampa. O material escolhido pra panela tem mais a ver com a temperatura – que vou explicar no próximo item – mas a questão dela ter uma tampa é o mais importante aqui pra que o vapor do próprio pão se mantenha por mais tempo em contato com ele. É por isso também que depois de 20 minutos se tira a tampa da panela. A partir desse ponto é desejável que a evaporação ocorra, pra facilitar o desenrolar da reação de Maillard (a caramelização, que dá aquela casquinha escura característica). Mas como se vê, a panela de ferro fundida que aparece num monte de dicas internet afora não é um utensílio obrigatório. Aqui vai do que mais se adapta a você e o que você tem disponível por aí.

Irradiação e temperatura do forno

Além da questão da umidade, outro ponto que diferencia fornos à lenha de fornos à gás, elétricos e de convecção é a temperatura que eles são capazes de atingir e manter.

O forno à lenha também funciona em grande medida por irradiação. Geralmente se queima uma quantidade grande de lenha no início, que serve pra elevar a temperatura dos tijolos de barro que formam a estrutura do forno. Depois, com o fogo mais baixo, é que são colocados as peças que se deseja assar. A temperatura nesse momento no forno de lenha é bem alta. A razão não é porque exista uma grande quantidade de lenha sendo queimada, mas porque toda a estrutura do forno detém uma boa capacidade térmica e está aquecido, fazendo com que o calor seja irradiado pro alimento. Capacidade térmica é o termo da física que descreve esses materiais que demoram a esquentar, mas que quando quentes retêm o calor e demoram a perder temperatura pro ambiente. O tijolo de barro é um desses materiais.

É por isso que mesmo em fogão de lenha em que o forno é um compartimento lateral vedado todo feito em ferro fundido, a estratégia de manter a hidratação dos pães também funciona (embora não tão bem quanto naqueles fornos em formato circular, em que os pães são colocados no mesmo vão da lenha). O ferro fundido também tem uma ótima capacidade térmica.

Compartimento do forno à lenha para assar panificados

Comercialmente um forno que é construído exatamente pra lidar com essa questão das temperaturas é o forno de lastro. O forno de lastro, diferentemente do de gás e elétrico que cozinham por condução, é um forno que usa a irradiação no processo do cozimento. Eles são construídos com materiais que tem uma capacidade térmica alta e uma vedação muitas vezes fraca.

O forno de lastro costuma ser construído com pedras refratárias. Ele é bastante usado em pizzarias e padarias, que precisam de uma temperatura alta pra assar pizzas e pães com qualidade. É por isso, por exemplo, que a pizza que você faz em casa dificilmente fica tão boa quanto a que você compra numa pizzaria, mesmo que a pizzaria não tenha um forno à lenha.

Fornos domésticos chegam no máximo a uma temperatura de 230-250o porque essa é a temperatura que o fluxo de gás e a resistência elétrica desenhada pra eles permite. E também porque os materiais do qual são feitos os fornos não aguentaria temperaturas mais elevadas sem sofrer algum dano. Quando você abre a porta do forno pra colocar o alimento, ele rapidamente resfria para 210o, já que as correntes de ar levam o calor pra fora dali. A estrutura de um forno de lenha ou de um forno de lastro, que criam um calor irradiado, elevam a temperatura bem mais do que esse limite dos domésticos, mantém melhor o calor e tem menos variação. Por isso que um pão assado no forno de lenha sai tão rápido e diferente.

Existem alguns truques que ajudam a manter a temperatura elevada nos fornos domésticos usando materiais com boa capacidade térmica, fazendo que uma parte do calor que vem deles seja irradiado e diminuindo então as perdas. Essa lógica pode ser usada também pra qualquer outro tipo de assado que tenha uma sensibilidade – por exemplo, bolos também podem se beneficiar de ter uma parte do calor irradiado. Não será o mesmo que um forno construído com esses materiais, mas faz sim uma boa diferença.

A sugestão mais conhecida para pães costuma ser adquirir uma panela em ferro fundido com tampa – que tem essa dupla função de manter a hidratação quando fechada e servir como material refratário. Mas essa não é a única solução. Arrumar uma pedra pra assar também é uma boa possibilidade.

Você pode comprar pedras refratárias que são vendidas com essa finalidade. Mas também pode usar uma pedra de granito ou mármore – não há uma pedra específica que se recomenda pra esse uso. Marmorarias costumam ter alguns retalhos de pedras de valor inferior que você pode negociar, mas uma pedra que sobra de um corte de uma obra qualquer pode ser cortada de forma que caiba dentro do seu forno e ser designada pra esse uso. A pedra deve ser colocada dentro do forno no momento do pré-aquecimento – que deve ser rigidamente seguido. Use de 30 a 40 minutos pra isso. Em seguida retire a pedra quente e coloque o pão sobre ela, e retorne imediatamente para o forno.

Existem também algumas formas feitas em pedra sabão com acabamento – como alças – que costumam ser vendidas pra essa finalidade e também podem ser levadas à mesa. Aqui em Belo Horizonte é bem comum encontrar esse tipo de artefato, já que a pedra sabão é muito abundante na região de Ouro Preto, que fica perto da capital. São bonitos e interessantes, mas é válido dizer que quanto maior a porosidade da pedra, menor vai ser a capacidade térmica dela. E a pedra sabão é conhecida pela sua porosidade.

Caso opte por mandar cortar uma pedra de granito, fique muito atento também ao peso que as grades do seu forno suportam. Nas marmorarias essas pedras tem espessuras diferentes e isso influencia muito no peso. Converse com quem for fabricar pra você.

Acrescentar alguns tijolos de barro dentro do forno à gás é uma solução improvisada que também ajuda a melhorar o tempo gasto e a qualidade dos assados de um modo geral. Só e preciso ficar atento à forma como eles são dispostos pra não danificar o fogão, nem tampar as aberturas da chama.

Outra opção acessível é usar uma chapa metálica de ferro fundido, dessas que podem ser usadas pra fazer grelhados no fogão. Assim como a pedra, eles dão conta de manter a temperatura e provocar irradiação, mas não são capazes de manter a umidade. Dessa forma, nos dois casos é preciso ainda fazer o processo de vaporização e umidificação do ambiente do forno. Mas o resultado compensa.

Fornos de convecção

Um outro tipo de forno que vale a pena falar sobre, não só por conta da panificação, é o forno de convecção. Saber sobre eles é um conhecimento útil de ter não só pra uma próxima vez que for necessário comprar um forno, mas também pra entender um dos equipamentos domésticos que mais fizeram sucesso nos últimos anos: a AirFriyer.

Todos os fornos domésticos funcionam por convecção, mas existem fornos em que uma ventuinha é acoplada dentro dele, o que serve pra melhorar a corrente de convecção criada. Antigamente, uma parte considerável dos fornos domésticos vinham com esse tipo de ventuinha, mas hoje ela é uma raridade. Infelizmente, isso significa que a qualidade desses produtos que temos acesso diminuiu ao longo do tempo. Progressivamente ventuinhas passaram a fazer parte apenas de equipamentos considerados de uso profissional.

Forno de convecção
Esse é o meu forno, da marca Wictory, com 4 andares e convecção. É um forno profissional, equipamento que nem sempre é fácil ter acesso ou espaço disponível numa cozinha doméstica

Ao provocar uma corrente de convecção forçada com a ventuinha, três coisas são melhoradas nesse processo. A primeira é que a distribuição do calor no forno tende a ser mais uniforme, o que evita que você precise virar o que estiver assando pra melhorar a cor no final. A segunda é que como a corrente de ar que circula mais rápido, isso tende a acelerar levemente o processo. Assim, um forno com ventuinha costuma precisar de menos tempo pra assar os alimentos. Por fim, um forno com uma ventuinha também cria condições melhores pra que a reação de Maillard (essa que carameliza/doura os alimentos) tenha condições de acontecer. Isso resulta em assados com uma aparência geral mais apetitosa.

O princípio de funcionamento da Airfryer é exatamente esse.

Eu não sou a maior entusiasta da Airfryer porque se você quer comer fritura, frite, e fique satisfeito com a coisa real. O marketing dela é completamente equivocado e surfa na paranóia do “saudável” que no final das contas não é nada de sadia, mas isso é assunto pra outro post.

O que eles não contam é que a Airfryer na verdade é um forno de convecção.

A Airfryer oferece um forno de convecção doméstico, compacto e por um valor acessível. Ela também permite uma regulagem de temperatura muito fina, que geralmente só é conseguida em aparelho profissionais em que a vedação e a manutenção da temperatura conseguem ser constantes. Isso pode ser bastante útil em processos que usam uma temperatura baixa constante, como a secagem de legumes, frutas e ervas.

Então embora em termos físico-químicos a Air Fryer não seja mesmo uma fritadeira, é a convecção induzida junto com a vedação do aparelho que tornam a Air fryer um aparelho interessante.

(Se você se interessar por ter uma Air Fryer, use este link aqui pra comprar que eu recebo um trocado pela indicação e isso mantém esse site no ar)

Como assar pão e conseguir uma casquinha dourada

Encontrando a casquinha dourada

A última sugestão é a mais simples de todas. Depois de terminado o tempo de assar do pão, desligue o forno mas deixe que ele fique alguns minutos a mais dentro dele. A parte final do processo vai ajudar a desenvolver a reação de Maillard, que dá a cor escura e bonita do pão. A irradiação induzida que sugeri anteriormente com certeza vai ajudar nesse processo, mas essa etapa final também vai ajudar a chegar lá.

E por fim, quando finalmente o pão for retirado, deixe que ele repouse pelo menos 30 a 40 minutos em uma grade, pra facilitar a ventilação. O pão nunca deve ser cortado assim que é retirado do forno porque a temperatura dentro ainda está muito quente, e ainda está acontecendo o processo de evaporação da umidade e cozimento do pão. Quando partidos assim que retirados do forno, a aparência do miolo do pão é de que ele está embatumado – ele tende a não manter a estrutura porque os amidos não estão suficientemente coagulados. E precisa que seja colocado numa grade que permita a cirulação de ar pra evitar que a umidade evaporada faça o pão suar, e jogue fora todo o seu trabalho pra fazer com que ela fique crocante.

O apressado aqui não só come cru como também estraga o trabalho bem feito. Então dê tempo ao tempo, arrume a mesa bem bonita enquanto isso, e espere o tempo necessário pra apreciar tudo que seu trabalho e conhecimento foram capazes de produzir.

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