A magia do silêncio

Não sou nem pretendo ser uma dessas pessoas que ficam reclamando e querendo ver o fim das redes sociais dentro das redes sociais. As redes têm mesmo muitos defeitos, que aliás são bem parecidos com o mundo que as criou, mas costumo pensar que ocupar as redes com aquilo que acho importante que ela tenha é o melhor que posso fazer do alto do meu tamanho pequeno, assim como também faço fora delas. Isso vale tanto pro tipo de conteúdo que quero que exista quanto pra forma que utilizo as redes.

Por conta disso, e talvez também pela minha formação em comunicação social, gosto de pensar sobre estar nas redes, e de apresentar formas diferentes, e uso uma diversidade de referências pra fazer esse tipo de construção.

Uma dessas referências é o livro A Magia do Silêncio, escrito pela monja Kankyo Tannier. O que quero nesse texto é apresentar o livro, e algumas visões que ele me trouxe pra pensar um jeito próprio de estar nas redes. Assim como a leitura e o que cada um escolhe fazer com a leitura são únicos, essa construção do jeito de estar nas redes também é um percurso particular, com muitas referências possíveis e sem uma resposta certa. Esse livro é só uma que encontrei e que achei que valia a pena compartilhar.

lendo o livro a magia do silencio

A calmaria na leitura

A Magia do Silêncio é um livro curto, bem humorado, que traz algumas sugestões de práticas calmantes pro dia a dia. É sobre a importância da busca do silêncio pra pessoas comuns, que querem encontrar quietude no cotidiano das grandes cidades ou no meio de uma vida particularmente barulhenta. Não espere que ele vá sugerir desligar todas as redes sociais, correr pra morar no campo ou fazer um retiro de meditação. Todas essas coisas podem até ser uma possibilidade, mas a proposta do livro é incorporar essas práticas apaziguadoras dentro do cotidiano.

O silêncio sobre o qual ela fala, na verdade, não tem nada a ver com a ausência de barulho. Se a gente parar pra pensar, a prática da atenção plena dentro do budismo é milenar. Não são as redes sociais, as cidades ou as demandas do mundo exatamente o nosso problema. Nós sempre vamos estar distraídos, um pouco perdidos dentro dos nossos pensamentos que nunca param, e isso pode causar sofrimento. O que ela sugere são formas de se apaziguar e ancorar, encontrando um silêncio que é interno. Os exercícios que ela propõe pra aprender a acessar esse silêncio interior envolvem diferentes partes nossas sensíveis: os olhos, os ouvidos, e até mesmo o corpo inteiro.

Embora a abordagem do livro encoste o tempo todo na espiritualidade, a autora faz questão de não entrar em nenhum tipo de doutrina mais aprofundada do budismo. Ela conta um pouco da sua história no zen, e da sua experiência com o silêncio em retiros, mas essas histórias são apenas pra criar um contexto. Esse afastamento, inclusive, é um dos trunfos do livro pra quem até se interessa por espiritualidade mas não se sente particularmente conectado com uma doutrina religiosa específica – como eu. Mas podem soar rasos demais pra quem espera uma abordagem mais espiritualizada.

Algumas vezes ela indica achados científicos que corroboram o que os textos budistas já diziam. Ainda assim, ela também não dá muitas referências aprofundadas, o que as vezes dá a impressão de que as ideias são um pouco frouxas demais. Parece que o que importa mais pra ela não é que você acredite na ciência ou no budismo, mas acreditando no que você quiser, que você experimente algumas das propostas. E isso, no fundo, talvez seja o mais importante mesmo.

O livro traz algumas práticas simples soltas – que as vezes soam mais como sugestões meio vagas porque ficam soltas demais. Gosto muito de uma que ela chama de “fazer cara de idiota”. Nessa prática ela sugere prestar atenção na tensão que a gente coloca em partes do rosto ao longo do dia. Em seguida, ela apresenta uma postura pra relaxar a língua: deixar a mandíbula cair entreabrindo a boca, e pousar a língua descansando sobre os dentes. Ela nos convida a ficar assim por alguns minutos, só respirando e prestando atenção no que acontece com o pensamento.

Relaxar a língua e a mandíbula costumam ter um efeito imediato de desacelarar o fluxo de palavras mental. Funciona bem pra mim, e essa é realmente uma área sensível, em que vez ou outra sinto dor por tensionar sem ver, mesmo passando o dia sem dizer qualquer coisa em voz alta. Ela brinca que a expressão que ficamos quando fazemos o exercício não vai refletir muita inteligência, mas esse é preço do seu relaxamento. É bem explicativo e bem humorado ela dizer que essa postura se chama “fazer cara de idiota”. Já pensou se fazer cara de idiota for a solução pra alguns dos nossos problemas?

gato fazendo cara de idiota
Talvez essa prática não renda nenhuma foto pra você postar nos stories, e nem o gato parece estar gostando muito de ser fotografado com cara de idiota de quem se enfiou no pacote de farinha, mas a tranquilidade que vem dessa cara é o que importa

O desafio da quietude nas telas

Embora o que eu use pra pensar as nossas relações com as telas esteja disperso por todo o livro, ela também se dedica especificamente a olhar pra elas.

Não são ideias de quem não sabe do que está falando. Kankyo tem um site, e administrou por muitos anos as redes sociais do mosteiro, e sabe como são desafiadores esses contextos. Ela deixa claro que o caminho do meio – que é um dos ideais filosóficos do budismo – leva a uma direção mais pragmática. É “aprender com as situações, e não evitá-las”. E é isso, eu acho, que torna as sugestões particularmente úteis.

Uma delas – a de se permitir alguns retiros curtos das redes sociais – eu já praticava antes mesmo de ter lido esse livro.

A primeira vez que fiz uma pausa real das redes sociais foi por causa de um exercício pra experimentar a mensagem de uma carta de tarô: a carta do Enforcado. O Enforcado é uma carta que fala sobre um sacrifício voluntário com o propósito de conseguir algo de maior valor. Traz medo e deixa as coisas estagnadas de pernas pro ar, mas também tem esperança de uma vida nova – que vai surgir na próxima carta, a da morte.



Na ocasião desse exercício fiquei 12 dias fora, como o número da carta. Desliguei tudo, não vi nem notificação. Fiquei com um medo danado de me sentir sozinha, entediada ou de perder algo importante. Mas realmente achei algo maior. Nos primeiros dias de volta, parei de abrir o aplicativo automaticamente quando sentia tédio. Percebi que estava me comparando menos. Relativizei a importância de estar sempre me movimentando publicamente. E foi mais fácil encontrar intenção no que eu queria comunicar.

Depois desse período nunca mais deixou de fazer sentido pra mim fazer pausas regulares. A ideia é que não sejam férias, mas pausas feitas quando faz sentido, quando você precisa se afastar pra encontrar de novo o seu centro. Elas podem ser tão aleatórias como quando se puxa uma carta de tarô. As pausas são sempre meu ponto de partida pra repensar o que morre pra deixar vir vida nova.

Encontrar a própria medida

Kankyo também lembra que muitas vezes nós ficamos muito entusiasmados com a ideia de uma vida em comum, e queremos compartilhar tudo, mudar tudo, e oferecer ou até impor pro outro o nosso jeito de pensar. A prática sistemática do silêncio, no entanto, vai levando a gente a entender que muitas vezes nossas questões não têm tanta importância.

Incorporar essa ideia na forma que usamos as redes sociais pode ser muito interessante. Quando fazemos um tuite ou um post no instagram contando algo que se passa conosco, permitimos que essa coisa retorne pra nós cada vez que pisca a notificação de que alguém deixou um like ou fez um comentário. Não interessa se o comentário valida o que você sentiu ou se ele te esculacha, ele se mantém ali presente por mais tempo. Fazemos com isso barulho em torno de coisas que nem sempre deveriam ganhar tanta importância. E até dificultamos que algum sentimento passe mais livremente por nós, já que ele ganha duração enquanto fica registrado ali nas mídias.

Não quer dizer que não devemos falar nunca das coisas que deixam a gente aflito. Mesmo nos mosteiros ela lembra que existem espaços e tempo pra falar e compartilhar. Mas a atenção ao que se fala, e o que se sente sobre o que se fala, pode ajudar a criar mais serenidade no falar. Esse cuidado importa pra decidir o que posta sobre si, mas tambem as notícias que escolhe compartilhar, os assuntos que decide participar e opinar. Prestar atenção nos efeitos impacta não só quem posta mas também as pessoas que estão conectadas com você.

Por fim, vale dizer que aceitar a natureza barulhenta das redes, e também a nossa, é um bom e difícil exercício compassivo. Reconhecer que as coisas são assim torna mais fácil criar pequenos intervalos de silêncio na nossa vida diária, porque reconhecemos que esses intervalos nos fazem bem. Como quem salpica um tempero num prato que está preparando, entender os momentos em que o silêncio deve ser generosamente acrescentado é o que nos ajuda a encontrar um jeito de estar nas redes que faça sentido pra nós mesmos. Temperar, que vem do latim temperare, significa obter medida própria. Todas as derivações dessa palavra, então, têm ligação com essa ideia original. Portanto, é do temperare, de encontrar seu jeito, que também vem a temperança, que a gente algumas vezes chama de moderação.

A Magia do Silêncio, 2018
Autora: Kankyo Tannier
Tradução: André Telles
160 páginas – Editora Sextante

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