Geleia de manga com maracujá da caatinga ou como fazer geleia com frutas desconhecidas

Recebi esta semana a foto de um licor de maracujá do mato que minha amiga encontrou no Armazém do Campo – entreposto que comercializa a produção agroecológica cooperada do MST em várias cidades.

Eu já tinha documentado e mostrado nas minhas redes esse maracujá e umas coisas que tinha produzido com ele, mas não sabia direito se queria ou não publicar esse post. Ter recebido essa imagem acabou me fazendo pensar que deveria. Tem hora que é difícil sustentar esse trabalho de ficar escrevendo – as vezes receitas, mas também meus ensaios e crônicas – nesse sistema em que a produção de texto longos, com trabalho de pesquisa que é todo misturado com a minha própria vida é meio invisível e pouco valorizado, feito um maracujá do mato. Me lembrar que é por querer muito que essas frutas e formas de produção possam ganhar um pouco mais de reparo, e que tem gente sim, como a minha amiga, prestando atenção, foi o que me fez sair desse estado meio embrutecido pra tentar ser um pouco mais generosa.

O caso é que conheci o maracujá do mato esse ano, depois de vir morar no norte de Minas. Esse nome, que é o que também vi sendo usado na feira aqui por essas bandas, é um pouco ingrato porque genérico, e existem mesmo outros maracujás que recebem esse mesmo adjetivo. Por isso, tenho preferido usar o nome maracujá da caatinga – que também é um nome que se tem registro. Usar o nome do bioma me parece interessante porque ajuda a lembrar desse lugar esquecido e tão comumente visto como sem vida. E também é útil pra não confundir com outros maracujás – eles são muitos, cerca de 150 tipos, como já contei em outro post por aqui no blog.

Eu resolvi fazer uma geleia misturando esse maracujá com os quilos de mangas maduras que deram na chácara onde estou morando. Geleia não é uma receita particularmente difícil, mas tem algumas questões sobre esse maracujá que me deram um pouco de trabalho pra encontrar. Além disso, tem também aquela famigerada e praticamente onipresente pergunta: “posso usar menos açúcar pra fazer (qualquer) geleia?”. Me convenci de que eu realmente tinha umas duas ou três coisas pra contar.

Um maracujá da caatinga cortado ao meio, onde se vê as características que descrevi no texto

O Maracujá da caatinga (Passiflorae cincinnata)

Se você assim como eu está sendo apresentado a esse maracujá agora, aqui vão algumas informações que vale a pena contar. A primeira é que ele não é um maracujá muito próprio pra comer puro – é mais azedo que o maracujá comum, de colocar na boca e a gente fazer careta. Tem muito menos caldo e é difícil extrair a polpa pura sem sementes, como dá pra fazer com outros. O cheiro dele assim que se parte ao meio é verdulengo, lembra realmente mato, mas quando transformado em suco o líquido se torna branco leitoso, naturalmente adocicado e muito aromático.

Como é uma planta do semiárido, ela suporta a seca – e inclusive a produção das frutas se dá nesse período, ali por volta dos meses de setembro e outubro. Ainda não experimentei cultivar a planta, mas separei umas sementes e espero que no próximo ano eu possa falar dessa produção em algum canto. É uma espécie promissora que vale a investigação, ainda mais quando a gente pensa nos desafios hídricos que a mudança climática pode trazer.

Além disso a durabilidade do maracujá da caatinga é incrível. Pode esquecer na gaveta da geladeira, acondicionado em saco plástico, que ele fica perfeito por mais de um mês. Aliás, foi desse jeito que ele acabou chegando em dezembro até a temporada da manga pra se transformar em geleia.

E por último, vale dizer que as sementes são mais duras que as do maracujá comum. Isso é digno de nota na cozinha porque se você deixar muitas delas num preparo a textura fica desagradável. O uso delas nas receitas tem que levar isso em consideração.

Eu segurando um pacote de maracujá da caatinga

O açúcar na geleia

Como eu tinha dito, geleia não é uma receita particularmente difícil. Você pode trabalhar sempre com uma fórmula, que dá pra usar pra quase qualquer fruta – mesmo uma que você nunca tenha experimentado, como pode ser o caso do maracujá da caatinga.

A ideia é trabalhar com pesos – e usar pra se chegar nas quantidades uma balança. A fórmula é a seguinte:

Peso da polpa da fruta
+
50 a 55% do peso da fruta em açúcar
+
Pectina (que pode ser encontrada em algumas frutas)

Fonte: 400g – Técnicas de cozinha, da Betty Kovesi et al. Dá pra adquirir o livro aqui

Muita gente, no entanto, acha que essa quantidade de açucar é excessiva. Já que é pra fazer uma geleia caseira, o bom é que dá pra alterar essa quantidade pra menos – digamos, 30% do peso das frutas.

A questão é que o que deve nortear a sua escolha não é bem se você quer ou não menos açúcar ou a possibilidade de dar o ponto direitinho, mas sim a conservação dessa geleia. O açúcar na geleia funciona como conservante natural por adição de soluto. As moléculas de água se desprendem da estrutura da fruta porque a concentração de sais do açúcar provoca essa reação. A diminuição e nova disposição da água é a responsável por aumentar a durabilidade do produto. Geleia é, portanto, um método de conservação que se usa para frutas.

Fazer uma geleia com menor quantidade de açúcar é principalmente assumir que ela deverá ser usada muito rapidamente. Quando se faz uma geleia como eu fiz, com mais de 6kg de polpa de fruta porque se está tentando aproveitar uma produção de época, diminuir o açúcar não é uma boa opção. Eu ficaria com quilos de geleia que precisariam ser usadas em menos de 1 mês.

Outros cuidados visando a conservação como esterelização de vidro, fervura pós-acondicionamento, ou manter os vidros dentro da geladeira, ainda assim não são suficientes pra prolongar a vida útil de uma geleia com uma porcentagem baixa de açúcar. Geleias sem açúcar ou com edulcorantes (adoçantes) as vezes são comercializadas, mas nesse caso elas passam por processos industriais que tem maior controle e menor contaminação, e geralmente contém algum outro tipo de conservante que não o açúcar. Não dá pra usar essas geleias como comparação porque são condições que não temos e nem queremos reproduzir na cozinha doméstica.

Dito isso, acho que fica mais fácil tomar uma decisão quanto a manter ou não esse percentil. Se você estiver fazendo geleia para consumo imediato, digamos que para usar numa sobremesa ou comer durante uma ou duas semanas, pode experimentar diminuir. Ainda assim, é bom ter em mente que a consistência pode ficar um pouco diferente ou precisar de ajuste na quantidade de pectina. Se a ideia é conservar e prolongar por meses o consumo de uma fruta, siga a sugestão de porcentagem da fórmula. Ela não é clássica à toa.

Vidros enfileirados de geleia sobre um chão de folhas secas

A pectina

Resolvida a parte da quantidade de açúcar da fórmula, resta entender a parte da pectina, e, especialmente, se tem ou não tem pectina no maracujá da caatinga.

Pectina é uma fibra solúvel que é naturalmente encontrada nas frutas, e que tem a propriedade de formar gel. Não é exatamente uma característica fixa da fruta porque ela se desenvolve à medida que as frutas amadurecem, e fica concentrada principalmente na casca e em volta das sementes.

Não são todas as frutas que têm pectina. Algumas são muito conhecidas por terem essa fibra – é o caso do limão e também da maçã. Mas pode ser difícil precisar a quantidade. A pectina é muito dependente do grau de maturação da fruta. E a qualidade do gel formado é dependente da quantidade de acidez que tem um preparo. No caso da maçã, por exemplo, ainda que ela seja rica em pectina, a pouca acidez de algumas qualidades pode deixar um pouco a desejar na hora de se conseguir a textura gelatinosa típica das geleias.

Por isso é que o suco de limão costuma ser usado quando se deseja desenvolver a pectina em uma geleia de frutas. Como você pode imaginar, a maioria da pectina do limão está na parte branca da casca e em volta das sementes. Mas a acidez do limão, junto com um pequeno teor de pectina que ele contém, costuma ser suficiente pra dar o ponto em muitos preparos. Nos que não é possível, existem técnicas pra extrair a pectina isolada e acrecentar ao preparo.

O maracujá comum é outra dessas frutas que reconhecidamente tem bastante pectina, com a vantagem de ainda ter uma acidez aceitável. Mas além da substância estar concentrada na casca, a ideia de que ele é rico não é necessariamente válida para todos os maracujás.

Quando se quer usar uma fruta que você nunca tenha lidado – como pode ser o caso do maracujá da caatinga – é possível procurar a informação, embora nem sempre ela esteja disponível, ou ir experimentando enquanto você faz.

Eu encontrei um documento técnico da Embrapa visando o desenvolvimento do fabrico comercial de geleia de maracujá da caatinga que me soprou que ele precisaria de pectina adicionada pra dar ponto. Mas de toda forma, estando ela no meu caso misturada com a manga, uma fruta que tem um teor de pectina razoável embora lhe falte acidez, eu precisava acrescentar limão. Não precisa de muito, mas a quantidade dá pra ir sentindo conforme você vai acrescentando o suco e percebendo uma variação na consistência.

Deixa eu resumir então como eu fiz:

Uma cesta com vidros de geleia de manga com maracujá da caatinga

Geleia de manga com maracujá da caatinga

1kg de polpa de manga e maracujá do mato processadas e misturadas
500g de açúcar
2 a 3 colheres de sopa de suco de limão

  1. Processe todas as frutas. Tenha em mente que esse 1kg usado na receita deve ser de pedaços de manga limpos, sem casca ou semente, e de polpa do maracujá da caatinga (que nesse caso pode ir com as sementes). A proporção das frutas fica a critério do gosto e de quem vai comer;
  2. Numa panela em fogo baixo coloque a polpa e o açúcar e deixe cozinhar vagarosamente. Não é preciso mexer muito, mas fique atento.
  3. Enquanto as frutas cozinham, retire com uma escumadeira ou peneira pequena a espuma que for ser formando por cima da panela fervendo. Essa etapa serve para deixar a geleia mais translúcida e brilhante no final;
  4. Depois de 10 minutos no fogo ou quando os pedaços começarem a desmanchar, passe as frutas por uma peneira. Essa etapa serve para terminar de desmanchar os pedaços de fruta, retirar as fibras da manga (caso ela seja fibrosa) e também para retirar as sementes do maracujá;
A geleia sendo peneirada
  1. Volte com as frutas para a panela e vá despejando o suco de limão, enquanto observa a mudança de textura. Não perca de vista que a geleia quente é sempre bastante mole;
  2. O ponto da geleia pode ser encontrado usando um pires (de preferencia resfriado). Coloque uma gota da geleia no pires e “corte” a gota com um dedo. A geleia está pronta para ser retirada quando o caminho aberto com o dedo fica marcado, sem escorrer de volta formando uma massa unida.
  3. Agora que você já tem uma ideia do volume final, se quiser pode recuperar algumas sementinhas do maracujá da caatinga que ficaram na peneira para decoração. Lembre-se de que diferente do outro maracujá elas são muito duras de mastigar, e não ficam muito agradáveis na textura. Use poucas;
  4. Coloque a geleia ainda quente nos vidros. Para a higienização, você pode fazer a fervura dos vidros por 10 minutos. Mas por uma questão prática eu aconselho preparar uma solução com 10% de hipoclorito de sódio (água sanitária). Isso significa que para cada 1 litro de água, é preciso 1 colher de sopa de água sanitária. Use essa solução pra encher todos os vidros e mergulhar as tampas por 10 minutos. Use colheres e copos medidores para ser preciso na medida e o efeito sobre os microorganismo será o mesmo da fervura;
  5. Vire os vidros de cabeça para baixo e deixe descansar. Essa manobra ajuda a criar um vácuo dentro do vidro, dificultando o desenvolvimento de bactéricas aeróbicas;
  6. Se for armazenar por muito tempo, pode ferver os vidros já cheios, ou manter refrigerado sem abrir por alguns meses.

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