Beleza pura

Uma bebida sendo derramada em um copo com gelos com flores dentro

Esbarrei num mercadinho oriental numa garrafa de soju, um destilado coreano feito de arroz. Estava esperando ficar pronto um tofu artesanal que é feito nesse mercadinho, e sentei num banco com a minha amiga, que tinha ido me acompanhar. Ela observou que o soju tinha uma estética bonita porque era cristalino. E isso sempre parecia pra ela curioso, já que geralmente bebidas fermentadas não são tão transparentes assim.

Eu nunca provei soju, mas o rótulo mostrava que era uma bebida relativamente forte, que tinha 17% de álcool. Apesar de saber pouco, pelo teor alcóolico eu imaginei que na verdade deveria se tratar de uma bebida destilada. É que na fermentação, o teor alcoólico costuma não ser tão grande porque o álcool produzido no processo acaba matando as próprias leveduras, que fazem a transformação do açúcar em álcool. Isso geralmente acontece ali por volta da concentração de 6% de álcool – e por isso costuma ser difícil encontrar algo fermentado que tenha muito mais do que esse teor.

Bebidas fermentadas que tenham mais álcool que isso, como o vinho e o espumante, só são possíveis de serem feitas porque a gente aprendeu a manipular as leveduras, e a cultivar algumas sepas que toleram uma quantidade de álcool um pouco maior, pra conseguirem transformar todo o açúcar da uva.

De toda forma, dava pra entender a confusão da minha amiga. Se você já tentou fazer cerveja ou alguma outra bebida fermentada em casa, talvez esteja consciente de que produzir um líquido fermentado límpido não é o mais comum. Mas não precisa nem beber cerveja pra entender isso que eu vou te contar.

As cervejas, vinhos e kombuchas que são vendidas, apesar de fermentadas, dificilmente são comercializadas com a aparência natural delas, que é opaca. Elas são tão cristalinas quanto qualquer outra bebida. E isso acontece por uma razão: nós aprendemos a manipular a fermentação pra produzir mais álcool, mas também pra deixá-la com uma estética mais bonita.

Uma garrafa de cerveja com a espuma escorrendo lentamente ao longo do copo, numa estética muito provocante

Essa história toda começou há muitos anos atrás, na região da Bohemia, na República Tcheca. O comum naquela época era produzir uma cerveja mais escura e turva do que as que a gente conhece hoje – pense na cerveja de trigo pra ter uma ideia do que estou falando.

Mas a Bohemia não era apenas um lugar onde se produzia cerveja. Foi nessa região, por volta do século XVI, que eles inventaram um recipiente novo, que até então não existia: o copo transparente pra beber cerveja, feito com vidro. Isso aconteceu porque eles descobriram um processo de fabricação novo, que tornava a produção mais resistente, o que fez com que eles se tornassem populares.

O vidro já existia muito antes dessa época. E também a ideia de usá-lo como recipiente já era familiar, mas geralmente era pra se beber vinho. A partir do desenvolvimento do vidro, a ideia de fazer uma cerveja que combinasse e valorizasse esse objeto novo começou a parecer interessante. Na cidade de Pilsner, que fica nessa região, nasceu então no século seguinte um tipo de cerveja mais leve, clara e transparente, que é uma das mais populares que a gente encontra por aí: a cerveja Pilsen. Foi a existência do copo de vidro transparente quem inventou a necessidade de uma bebida que combinasse com ele.

Um copo de cerveja com as bolhas do gás subindo pelo copo. Uma imagem estéticamente agradável

Na cerveja, o processo de deixar ela mais clara e cristalina depende tanto do tipo de fermentação usado quanto da filtragem que é feita das leveduras. Na cerveja Pilsen, acontece o que a gente chama de baixa fermentação – as leveduras se concentram no fundo do recipiente, e por isso é mais fácil deixar elas de fora durante o processo de envase. Nas cervejas do tipo Ale elas ficam no topo, e por isso o processo ganha o nome de alta fermentação. A filtragem nesse processo é fisicamente mais delicada de ser feita, e por isso algumas cervejas fabricadas por esse processo permanecem turvas.

Em outras bebidas – como o vinho – o processo de filtragem é químico. São adicionadas substâncias como a albumina do ovo, ou a caseína do leite, que fazem aglomerar as partículas sobrenadantes, deixando o líquido translúcido que a gente conhece.

Todas essas bebidas fermentadas – a cerveja, o vinho, mas também o espumante, o saquê, a kombucha, que agora se tornou mais disponível mas ainda está bem longe de ser popular – passam por um processo de filtragem pra ganhar essa aparência cristalina atraente que a gente vê nas garrafas vendidas por aí.

Gif estética de uma taça de vidro com espumante, com o perlage (bolhas) subindo lentamente

Mas não são só as bebidas fermentadas que passam por esse processo de embelezamento. No mundo da comida, isso também acontece com o azeite (ele é filtrado); com o açúcar (que a aparência natural é mais ou menos como a da rapadura moída); com a farinha de trigo (que passa por processo de branqueamento com ozônio ou outros compostos). Até os pratos que montamos e levamos pra mesa têm sempre em algum momento uma preocupação em fazer com que fiquem com uma apresentação apetitosa. O que é atraente, é claro, varia de acordo com a época. Pode aparecer na forma como fazemos a montagem das comidas, até nas louça escolhida pra servir – igualzinho o caso do copo de cerveja.

Fora desse universo não é diferente. Muitas das coisas que nós produzimos passam por processos pra se tornarem mais simpáticos. Muitas vezes julgamos que essas mudanças são supérfluas, antinaturais ou nocivas. Mas esse é um processo muito humano, que se relaciona com sedução, adequação e, principalmente, pertencimento.

Eu tenho um interesse muito particular por essa construção estética que fazemos com a comida hoje. E talvez seja por isso que estou vez ou outra fazendo alguma referência no que escrevo a algo que eu observo no Instagram. Percebo que essa estética das imagens das redes, que é milimetricamente curada, me deixa com o olhar um pouco viciado, achando que tudo que não está dentro do que é valorizado é um pouco descuidado – questão que já discuti em outro texto.

Eu percebo bem como essa prática está entranhada em mim quando peço pro meu marido, que não tem nem nunca teve uma conta nesse rede social, tirar uma foto pra que eu poste. Tudo bem que talvez ele não tenha um olhar muito atento pra fotografia, mas todas as vezes eu fico surpresa em como ele nunca pensa em “limpar” a imagem. Ele não tira do quadro objetos que não fazem parte da cena mas aparecem de relance, nunca pensa em me dizer pra construir uma pose ou quem sabe ajeitar o cabelo, ele nunca achou que deveria deslocar uma plantinha ou qualquer outra coisa pra melhorar um pouco a composição da imagem. Ele não reconhece uma diversidade de cacos que meu olhar está muito acostumado a editar, mesmo que eu não esteja muito consciente enquanto passo o feed.

É muito tentador achar que o Instagram, com as suas imagens muito bem pensadas, está estragando o nosso entendimento sobre a vida real e como as coisas verdadeiramente são.

Mas esse processo de querer transformar as coisas em beleza pura é longo. Pensar esteticamente nas coisas do nosso cotidiano, como o copo de cerveja translúcida me mostra, não é uma coisa nova, e nem exatamente o problema. É só parte dessa necessidade humana de comunicar coisas aos outros.

Um copo de whisky com pedras de gelo e um ramo de alecrim dentro, que foi posto fogo e solta a fumaça, como se fosse um incenso com uma linda estética

Eu fico pensando em como a criação de uma estética cultivada como a do instagram, antes de ser um problema, já foi usada pra construir uma aceitação por grupos minoritários.

Por muitos anos, as pessoas que expressavam uma sexualidade homo foram vistas como doentes, criminosas, ou anormais. Por serem constantemente perseguidas, a expressão do afeto que sentiam por outras pessoas acabava tendo que acontecer fora das vistas, já que faziam essa leitura negativa do que aquilo significava. As possibilidades de deixar essa vivência aparente eram o desprezo ou uma crítica perigosa, que esbarrava numa compreensão medicalizante, judicializante, e muitas vezes fisicamente aniquilante.

Mas uma das coisas que discretamente foi fazendo com que se repensasse essa visão foi ir construindo uma nova imagem; uma que se afastasse dessa interpretação de que os corpos dos homosexuais fossem desviantes e adoecidos.

É assim que começa, ainda com os dândis no século XIX, a se usar as imagens pra marcar uma nova estética. Os dândis eram homens que imitavam um estilo de vida aristocrático que já tinha desaparecido, e tinham um esmero especial quanto à aparência física, que ia desde o cuidado com as vestimentas, até uma linguagem e hobbies considerados elegantes. Ainda que não dê pra se pensar que todos os dândis fossem homossexuais, a visão deles do quanto o estético era essencial permitiu uma mudança no que era aceito de ser expresso por homens, já que a essa altura a preocupação com a aparência era considerada uma tolice feminina. A estética aos poucos volta a ser uma oportunidade pra transformar a vida numa obra de arte. É com eles, inclusive, que nasce a ideia contemporânea de um estilo de vida.

A busca de uma beleza e de uma perfeição cultivada começa então a aparecer nos gestos, nas roupas, e nas escolhas intelectuais, ajudando a contar uma história bem diferente sobre o que era ser esse outro homem.

Corpos jovens, atléticos e fortes, algum tempo depois, passaram a fazer parte do repertório dessa nova construção, que se opunha radicalmente à visão de um corpo doente que antes existia. Embora hoje em dia dê pra questionar se um homem gostar de outro homem se limita a essas imagens, são essas construções que foram renovando o que se sentia quando se pensava sobre o que era ser gay.

Um copo de drink com os gelos se mexendo, que tem um quadradinho de sanduíche colocado na borda, junto com uma palitinho com azeitonas e picles de aperitivo. Uma imagem estética

Comunicar, como se vê, não é só transmitir mensagens. É algo bem mais dinâmico, plural, e influenciado pelo que as mensagens nos fazem sentir. Nós mostramos os nossos gostos e prazeres não somente pra dizer quem somos, mas também pra lançar nossas teias por aí, transformando as coisas um pouco mais parecidas com o que a gente gosta de ver.

Saber de tudo isso não me faz sentir menos incomodada ou ser menos crítica com o Instagram. O tipo de manipulação de imagem que é possível dentro da plataforma ainda me parece estranho. Pessoalmente, me sinto incomodada com a forma como algumas pessoas escolhem fazer uso das possibilidades de modificação das imagens que existe ali dentro. Mas essa construção estética não é um problema do meio. É uma questão que nós, enquanto humanos, temos. Nós precisamos de imagens pra fazer um meio de campo entre o que sentimos, e o que recebemos e produzimos pro mundo ao nosso redor. O mistério mesmo é saber que uso fazer dessas abstrações.

Embora bebidas fermentadas cristalinas, copos de vidro, roupas de cetim com babados, e plataformas de mídias sociais não sejam exatamente a questão, essa necessidade de algo que encante os olhos vale a pena ser percebida e validada. Mas nos tornarmos mais conscientes de como os objetos e imagens são manipulados é uma oportunidade pra captar as construções que interessam que façam parte da nossa vida.

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As imagens deste post são cinemagraphs do projeto russo Kitchen Ghosts, que captura em loop momentos cotidianos que envolvem comida.

Texto originalmente publicado na newsletter em março de 2022, com o apoio financeiro dos leitores. Pra manter um pedacinho da internet independente, considere também ser mecenas do OutraCozinha.