Sinto falta de falar sobre as incertezas

Enxerguei no quintal mais uma planta nova que ainda não tinha me dado conta. Espinhuda, deve estar com no máximo uns 20cm de altura, 5 folhas, cada uma com 3 foliólos – exceto uma que está com 5 – e já tem um raminho com 4 flores apontando. Toda a cara de que é alguma espécie de Rubus, com certeza diferente da framboesa silvestre (Rubus rosifolius) que já tinha encontrado brotando espontânea no quintal.

Imediatamente fiz uma foto daquela espinhudice miúda e mandei pra minha amiga, que até é bióloga mas não é botânica; na verdade ela entende mesmo é de insetos. Enviar pra ela, no entanto, não tem muito a ver com a formação dela, e sim com a empolgação com que dividimos as curiosidades, as coisas que não sabemos e nossas observações bobas sem precisar ficar nos preocupando em ter certezas.

Além dessa amiga, também tenho outras num grupo em que temos trocado um pouco das nossas tentativas de escrever e de publicar, e também de pintar, de voltar a blogar com mais regularidade, inventar embalagens, sermos bobas, assistir filmes e séries pra depois conversar entusiasmadas e trocar coisinhas sobre ele que por um acaso a gente esbarre e que continue a botar lenha pra gente pensar naquele assunto. Nada ali tem um ponto final e tem me feito tão bem não precisar de fato ter certeza de nada, ser suficiente que a gente esteja apenas procurando.

Essa convivência tem me feito perceber o quanto sinto falta de falar sobre processos. Sinto falta de falar sobre todas as coisas que não sei. Sinto falta de fazer em voz alta as perguntas que me faço na cabeça, e anunciar as pequenas descobertas que não chegam a ser certeza de nada – e que nem mesmo sei se um dia essa certeza vai acontecer.

Não sei se é a presença da internet e a quantidade de tempo que passo nela que me fazem sentir essa falta. Não tenho certeza nem mesmo se é alguma coisa do meio. Mas as redes sociais são declaratórias, afirmar e mostrar é a prerrogativa de cada tuite e post no instagram. Pode também ser parte de estarmos lidando com um número absurdo de gente o tempo todo nesses ambientes, o que faz com que tenhamos que permanentemente fazer reafirmações de quem a gente é e do que a gente sabe, pra não deixar ninguém perdido ou te questionando a cada mensagem. Não estou pensando em perfis conectados com 100 mil nem 10 mil pessoas. Lidar com 300 pessoas diferentes simultâneas diariamente, que você também não tem como ter tanta clareza de quem são, e muito menos sabe o que exatamente o algoritmo entrega a elas, já é um número alto demais, e até bem poucos anos atrás jamais seria possível pra uma pessoa comum.

Não deixo de considerar também que a falta que sinto de falar das incertezas pode não ter nada a ver com as redes, que é algo humano. Falar das nossas certezas é uma forma de reafirmar o self, é contar de novo uma história de quem somos e de como chegamos aqui, um jeito de cristalizar o que a gente acha que são nossas identidades. Então é natural que a gente esconda um pouco aquilo que é incerto pra tentar com as nossas certezas pertencer a alguma coisa.

Mas ainda que isso seja muito humano, há algo sendo reforçado nesses contextos digitais. Neles eu sinto que preciso provar o tempo todo que eu sou eu mesma, sendo que ser eu mesma é um padrão de hábitos, desejos e conhecimentos consistente e reconhecível, que valha a pena acompanhar. Qualquer imprevisibilidade e incerteza podem ser questionados, podem ser o motivo de abandono e de desistência. E ninguém gosta de se sentir rejeitado e sozinho.

O que me parece especialmente triste em não falarmos das dúvidas é que isso reforça uma ideia sobre a nossa constituição como se ela existisse de maneira separada dos outros e do mundo. É quando me vejo dividindo as dúvidas que consigo juntar partes e construir algo novo. É na possibilidade de compartilhar com os outros minhas inconsistências, desconhecimentos e interesses que nascem e morrem que vou sentindo que elas vão se tornando outras coisas a partir do que os outros me trazem. Não poder compartilhar as dúvidas e processos tem a ver com querer manter o controle sobre a narrativa de quem somos, mas é um controle ilusório, já que é impossível contar uma história sozinho, sem a participação da parte que está ouvindo na construção de sentido.

Resolvi aproveitar que quando fiz a descoberta da plantinha espinhuda estava sentada no sol, disposta a ficar um tempo por ali tentando me aquecer, e trouxe um livro sobre frutas lá de dentro de casa pra tentar me decidir que planta ela era. Fiquei entre duas: Rubus sellawii, que é uma framboesa de cachos, nativa do Brasil; e Rubus ulmifolios, um tipo de amora preta, que colhia aos montes nas andanças no mato quando morei em Portugal. As duas tem de 3 a 5 folíolos e espinhos (mas a descrição da sellowii, não sei bem a razão, se parece mais com o que estou vendo). Pela descrição, a folha da R. ulmifolios é mais fina – tem uma textura de papel, enquanto a outra é mais grossa – algo que lembraria uma cartolina. Só que essa planta está tão nova que é difícil diferenciar usando esse aspecto. A melhor pista que encontrei são as flores. A Rubus ulmifolios solta ramos com 3 flores. Eu já consigo enxergar 4 botões saindo juntos na que encontrei. A Rubus selawii, no entanto, solta ramos com 30 a 90 florzinhas – são mesmo cachos, estou imaginando que ela se pareça quase com uma uva. Se for ela, dentro de alguns dias vou começar a ver. Pode ser também que eu descubra que não é nenhuma das duas, e nesse caso ainda não tenho outra pista pra saber o que é. Mas o certo mesmo é que não estou interessada em descobrir sozinha.