Para perder o medo de fazer pão

Fazendo pão

Os comentaristas nas redes sociais podem dar a impressão de que fazer pão é muito fácil. Mas quem já tentou sabe que na realidade o processo pode ser trabalhoso, demandar tempo e atenção, e estar sempre sujeito a erros e frustrações. O problema de fazer pão nem sempre é a receita, mas o processo. Muitos de nós crescemos em ambientes em que fazer pão não era uma coisa corriqueira, é algo que não faz parte do nosso repertório. E mesmo nas casas onde o ele era feito, as vezes uma aura de mistério e da necessidade de dedicação ronda o processo. Por tudo isso, fazer pão pode ser bastante intimidador.

Resolvi registrar algumas observações pra quem tem interesse em tentar fazer pães mas encontra dificuldades. Este texto é especialmente praquelas dificuldades relacionadas com medos e suposições – como a de que existe um pão “certo” a se fazer ou de que pra fazer pão tem que gostar da parte da sova – na verdade ela nem precisa existir.

Este post é o primeiro de uma série sobre fazer pães. Na próxima semana vou publicar um com algumas dicas mais práticas. A ideia é ter resultados melhores na hora de assar num ambiente doméstico, sem precisar de equipamentos especiais pra isso.

Sovando o pão
Máquina de pão é uma forma válida de fazer pão

Uma passada pelas fotos e legendas das redes sociais pode dar a impressão de que a forma desejada ou “verdadeira” de fazer pão é somente o pão de fermentação natural, aquele que a gente usa o levain. As vezes parece que qualquer outro pão é só uma aprendizagem pro topo da carreira de padeiro amador no instagram, que é saber fazer esse tipo de pão. Embora pães de fermentação natural sejam realmente deliciosos, é contraprodutivo pensar dessa forma.

Pão é pão e não tem uma forma mais válida ou menos válida de preparar qualquer alimento.

As máquinas de pão são úteis se você quer começar a fazer pão e se sente um pouco receoso com a demanda de tempo que isso pode requerer. Além dela se encarregar do processo da sova e de assar, ainda tem a vantagem de poder programar pra que ela faça a noite e você acorde com um pão fresquinho e quente pra comer no café da manhã. Os meus primeiros pães, aliás, foram feitos nela.

Essas máquinas têm uma diversidade de receitas diferentes espalhadas pela internet, que você pode usar pra criar pães de sabores diferentes. Ter uma dessas é interessante também porque observar o que tá sendo feito te faz prestar atenção no processo de panificação. Isso ajuda a fazer perguntas e procurar respostas pra achar a receita que mais te agrade. Não é incomum que a facilidade leve quem tem uma máquina a fazer um pãozinho ou outro pra presentear um amigo ou familiar.

Apesar disso, depois de um tempo pode acontecer de você enjoar porque a máquina produz mais ou menos o mesmo tipo de pão de forma sempre. Ainda assim, é possível aproveitar a máquina pra fazer apenas a parte do preparo e da sova, e dar forma e assar no forno. Isso amplia bastante o que você vai conseguir fazer.

Uma coisa que vale a pena saber antes de comprar uma é que todas elas – Britânia, Mondial, Cadence – são praticamente idênticas. Na verdade todas essas empresas compram peças na China e elas só montam as máquinas no Brasil, de modo que a potência, durabilidade e funcionalidade de todas elas é muito semelhante. Até o defeito mais comum – que é o vazamento da cuba no lugar onde o batedor é colocado – costuma ser o mesmo. E o conserto é a substituição da cuba. Então compre sem medo a marca da sua preferência ou a que estiver com o valor mais em conta.

(Se você se interessar por ter uma, use este link aqui pra comprar, que eu recebo um trocado e isso mantém esse site no ar)

Colocando o pão no forno

Pães chatos do tipo chapati, roti ou pita são ótimas pedidas

Esse tipo de pão dificilmente é o que vêm à cabeça primeiro quando alguém fala sobre fazer pão, o que é uma pena, porque na história da humanidade esses foram os primeiros a surgir. Além de serem mais simples e rápidos, são gostosos, tem uma variedade – alguns são macios e outros crocantes. E também têm alguns segredos na hora de fazer que são interessantes de descobrir.

Existe uma diversidade deles. O que é característico além do formato achatado é que precisam de pouca ou nenhuma fermentação – e por isso poupam tempo. Geralmente levam poucos ingredientes: água, farinha, sal, alguns levam fermento, e ocasionalmente um pouquinho de óleo. São tão leves que costumam inflar pelo simples fato de entrar em contato direto com o calor. Eles são assados colocando sobre uma superfície quente, como uma pedra, a parede de um forno de barro ou até mesmo direto na trempe do fogão. E saem rapidinho, dando pra você fazer um monte.

Dá pra dividir os pães chatos em dois grupos: os que levam fermento, como a foccacia, o naan, o pita e até a pizza; e os que não levam, que a gente chama de pães ázimo. O matzá ou pão judaico, a tortilha mexicana, o chapati e o roti indiano são pães desse segundo tipo, e costumam ser os mais fáceis.

Você pode, por exemplo, fazer uma receita de chapati. Pra isso você vai precisar de um rolo de massa ou uma garrafa de vidro reaproveitada pra abrir, e assar sobre uma frigideira. No final do processo, o pulo do gato é colocar esses pães direto na chama do fogão por 5 segundos em cada lado e esperar a mágica: eles vão inflar sozinhos e criar uma casquinha queimadinha perfeita. Aí é só comer com alguns legumes frescos e hommus ou coalhada seca.

Abrindo massa de pão
Você não precisa amar sovar, e nem sovar

Além da questão do tempo que a fermentação demanda, a parte mais intimidadora no pão pra mim é a sova. Não costuma ser um tempo longo. A maioria das receitas você resolve agitando os braços e jogando a massa contra a bancada por uns 10 minutos – mas pra mim é um esforço físico que tenho certa dificuldade de fazer. Passei por uma cirurgia de esvaziamento axilar por conta de um câncer de mama que tive aos 26 anos, e por isso esforços com o braço direito pra mim são sempre um pouco exaustivos e limitados.

A verdade é que mesmo que você não tenha passado por nada parecido com isso, ninguém é obrigado a achar a parte da sova uma atividade agradável. Fazer pão sem sovar com suas mãos não torna o pão menos pão. E existem técnicas pra você fazer pão sem precisar dela (e sem a máquina de pão também, como eu já tinha sugerido anteriormente).

A função da sova é fazer com que aconteça uma mudança física na estrutura da massa. Ela faz desenvolver a rede proteíca de glúten, que é capaz de segurar melhor as bolhas de ar que se desenvolvem no processo fermentativo e que deixam o pão com essa cara esponjosa. Ou seja, a sova é indispensável pro pão virar pão, mas dá pra fazer isso com outros jeitinhos.

No caso dos pães chatos, uma batedeira simples com um batedor de massa pode ser um caminho que facilmente resolve essa parte. Para pães de fermentação longa (usando levain ou fermento biológico), existe uma técnica de dobras chamada Stretch and fold que é simplesmente fantástica. Ela foi criada e publicada no livro Peter Reinhart’s Artisan Breads Every Day, mas é suficiente você assistir vídeos como este, que existem aos montes mostrando como se faz.

Em vez de sovar, você dobra a massa como se ela fosse um pedaço de papel. Essas dobras são feitas um número pequeno de vezes, prestando atenção ao sentido que são feitas e no intervalo entre elas. Esse vídeo só mostra a primeira parte das dobras, mas depois você deve continuar o processo mais 4 vezes dando intervalos de descanso de 10 minutos cada. É o processo que a gente mais usa aqui em casa. Até hoje acho muito mágico ver como entre uma dobra e outra o pão simplesmente ganha resistência e vai cada vez mais sendo difícil de dobrar. Funciona perfeitamente e o glúten se desenvolve e prende as bolhas de ar na sua rede direitinho.

Ah! E já que estamos falando sobre se sentir mais confortável em fazer pães, o Peter Reinhart também tem um TED Talk sobre a arte de fazer pão que é bastante inspirador. Vale colocar na lista e assistir qualquer hora.

Pães assados
Dar errado faz parte

Por fim, tenha em mente que mesmo seguindo bem direitinho uma receita as coisas podem dar errado. Isso não significa que você não tem mão boa, não sabe cozinhar ou seguir uma receita. Fazer pão, assim como qualquer outra fermentação, é um processo vivo. Muitas variáveis diferentes como a temperatura do dia, a umidade, o tipo de armazenagem do fermento, que não estão registradas na receita, podem influenciar no resultado que você vai conseguir. Fazer pão, assim como muitas outras coisas boas, as vezes leva um pouco de tempo mesmo. Mas é uma habilidade bem legal de ter.

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