Talvez você deva conversar com alguém

o livro Talvez você deva conversar com alguém

Mesmo as pessoas menos sonhadoras constroem histórias pra dar significado pras coisas que vão acontecendo na vida. É involuntário esse exercício. Enxergar os fatos e a partir deles compor narrativas pessoais é explicar pra nós mesmos quem somos, quem nos tornamos, e porque estamos fazendo o que estamos fazendo. É uma forma da gente se apropriar dos eventos do mundo como nossos.

Apesar de nas nossas histórias sermos os narradores e personagens principais, não é sempre que a gente tem clareza que sentimos algumas coisas. É engraçado, mas pode ser particularmente difícil nomear algumas emoções que a gente sente. Assim como nem sempre percebemos que estamos tensionando a mandíbula, respirando curto ou com a coluna encurvada, também passa despercebido certos estados emocionais e como eles chegaram até nós.

É preciso admitir que não somos narradores muito confiáveis. Além da questão da autoconsciência, a nossa visão é parcial porque é desconfortável admitir certas contradições, incoerências, ou que não somos quem gostaríamos de ser. E por isso esse processo de reconhecimento emocional nem sempre é simples de se fazer sem alguma ajuda. A questão é que quando se vivencia processos dolorosos ou desejamos mudar uma situação, ver a historia por outro ângulo pode ser indispensável. É bom poder conversar com alguém sobre as coisas que sentimos em silêncio dentro da gente.

Talvez você deva conversar com alguém é um livro que explora por que o processo narrativo de recontar nossa história pode ser tão terapêutico. Nele nós acompanhamos 4 diferentes histórias de pessoas em processo terapêutico, e as mudanças que elas vão construindo na leitura de suas próprias histórias. Esse processo é narrado pela autora, Lori Gotlieb, que também é terapeuta. Mas uma das coisas mais corajosas do livro é que Gotlieb também se coloca num lugar vulnerável, e conta sobre a necessidade que ela também teve de contar sua história pra um terapeuta, pra construir mudanças na sua vida depois de um acontecimento difícil. Um terapeuta é uma pessoa como outra qualquer; todo mundo está sujeito a precisar de ajuda.

Muitas pessoas pensam em terapia como um exame sem fim da própria infância, até entender porque se reage de determinadas maneiras sobre as coisas. O que o livro faz é mostrar que o processo terapêutico se parece menos com isso e mais com colocar um espelho na sua frente pra que você possa se ver e reinterpretar a sua história, como conta a própria Goetlib nessa entrevista pra um podcast. E a partir daí, fica mais fácil construir mudanças.

Além dessa discussão sobre o funcionamento do processo terapêutico e da construção de narrativas, o livro tem uma coisa muito gostosa na forma com que ele foi escrito. Tem algo nele que me lembra muito um sitcom. Ele tem uma alternância de personagens e quebra de capítulos que criam um suspense, o que te deixa doida pra saber o que vai acontecer com cada uma das pessoas. É um livro grande, de mais de 800 páginas, e apesar disso li em pouquíssimo tempo e em condições longe das ideiais – baixei no celular e li por ali mesmo, porque era o que tinha disponível naquele momento. Isso é parte do mérito do livro, que é capaz de criar um interesse que soa muito natural – porque afinal, a forma é tão importante quanto o conteúdo.

Acho que existem dois tipos de pensamentos opostos sobre saúde mental que circulam bastante. Enquanto uma parte das pessoas segue subestimando a importância desse tipo de atenção e cuidado, e acreditando que mudanças nos estados emocionais é uma questão de força de vontade, há um segundo grupo que acredita que terapia é a cura para todos os males, uma tipo de processo mágico que todos deveriam se submeter porque é capaz de transformar as pessoas da água pro vinho. Embora elas sejam opostas, as duas posturas têm problemas.

A primeira banaliza os desconfortos emocionais, e invalida a necessidade de apoio. É muito importante a forma como livro reforça a mensagem de que ninguém dá conta de tudo sozinho e ter ajuda profissional é muito legítimo. Eu diria que essa é a leitura mais fácil de ser feita do que é a proposta do livro.

Mas nas entrelinhas, também dá pra encontrar alguma coisa que responda a esse segundo grupo, o das pessoas que se esquecem que todas as pessoas são limitadas e continuarão sofrendo porque há coisas que são insuperáveis. Gosto muito de observar que o título carrega um Talvez. Isso ajuda a lembrar que ainda que a gente não seja um narrador tão confiável, somos os únicos que podemos dar conta dos nossos desejos. O processo terapêutico é apenas uma das opções válidas pra se trabalhar mudanças.

Validação e compaixão

Ao tentar responder o que o processo terapêutico tem de singular que nos ajuda a trazer mudanças nos nossos comportamentos, acho que o livro sem querer também nos permite extrapolar e pensar no porquê nem sempre conversar com alguém próximo é capaz de nos auxiliar nas nossas reintepretações e mudanças. Muitas vezes, quando contamos nossos causos, as pessoas tendem a responder endossando nossa visão sem fazer muitas perguntas. É aquele tapinha nas costas, e um apoio incondicional que nem sempre leva em consideração verdadeiramente o outro.

Validar o que alguém nos conta é importante. Mas a resposta tapinha nas costas, apesar de ajudar a se sentir bem, dificulta enxergar coisas novas. Esse tipo de resposta nem sempre é útil porque, é preciso lembrar, não somos narradores muito confiáveis. Isso não quer dizer que tudo o que contamos seja inválido e falso, nem que sejamos incapazes de captar novas percepções ou fazer reinterpretações sozinhos. Mas acolher ao mesmo tempo que se faz perguntas interessadas pode melhorar o processo. Isso facilita não só que a gente conte uma história, mas que demos uma nova interpretação possível pras coisas. E é mais fácil fazer isso junto com outras pessoas, profissionais ou não. Afinal, somos seres gregários, os seres humanos não foram feitos para serem sozinhos.

Não adianta também dizer simplesmente pra outra pessoa mudar. É preciso estar ao lado da pessoa no processo de mudança. E isso, muitas vezes, é possível de ser feito fazendo perguntas honestas, com o cuidado de entender que ainda que as visões sejam parciais nas histórias que contamos, há sempre algo de profundamente verdadeiro e válido em cada percepção. Isso é o que nós chamamos de ter verdadeiramente compaixão pelo outro, e que é capaz de nos transformar. E eu acredito que é importante levar isso pros nossos relacionamentos.

O psicólogo humanista Carl Rogers tem um aforisma que gosto muito, que diz: “Quando me aceito como sou, então posso mudar”. Acho que é nesse espírito que leio Talvez você deva conversar com alguém: é um livro que convida que a gente olhe pras nossas histórias com menos julgamento. Tanto a escuta dos nossos acontecimentos quanto as suas interpretações podem ser feitos com uma voz gentil e curiosa. E essa gentileza é que possibilita a mudança, a partir do processo terapêutico ou da vida cotidiana. Ao recontar as histórias de seus pacientes e a sua própria, Goetlib cria um espaço pra que a gente possa examinar a humanidade que existe dentro de nós. Por isso é uma leitura tão preciosa.

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