Direto do produtor

colheita de beterraba na zona rural

Mostrei no instagram o processo de plantar grama pra gato usando sementes de milho de pipoca. Usei uma pipoca diferente, crioula, de cor preta, que era a que os agricultores do interior onde eu morava cultivavam regularmente. Uma pessoa então me chamou no privado pra me contar que ela também tinha daquele milho, que ela comprou direto do produtor, mas que ela nunca conseguiu fazer ele brotar. Queria a minha ajuda.

Milho preto de pipoca e grama
Milho crioulo de pipoca, de cor preta, e a graminha dela no vaso plantada para os gatos mastigarem quando precisarem de um digestivo

Quando alguém não consegue fazer um grão germinar, seja pra plantar ou pra fazer brotos comestíveis, costumo levantar duas hipóteses. A primeira é que a semente pode estar um pouco velha. Sementes geralmente perdem o potencial germinatório depois de um tempo. Isso é muito variável, algumas esperam anos armazenadas até mesmo na terra até encontrar uma janela ótima pra brotarem. Mas algumas sementes perdem a capacidade dentro de pouco mais de um ano. No supermercado, apesar das datas de validade e fabricação – que no caso de grãos é mais uma data de envase do que um atestado de quando aquela semente ganhou existência -, a gente nunca sabe muito bem quanto tempo aquelas coisas estão lá. O fato de que elas estão dentro do prazo de validade também diz muito pouco sobre o potencial germinatório; ela pode estar perfeita pra comer e ainda assim estar tempo demais estocada pra servir pra esse propósito específico de germinar.

A segunda hipótese que explica grãos que não germinam é que as sementes podem ter passado por radiação gama para evitar a proliferação de insetos, a eliminação de microorganismos, ou ainda a própria brotação. Essa técnica na verdade é usada com uma diversidade de propósitos na agricultura, e em diferentes etapas. Ela pode inclusive ser usada com o propósito oposto, de aumentar a brotação (o sol também emite radiação, e o princípio portanto é o mesmo), e é a dosagem que define que efeitos acontecerão com as sementes.

Esse processo de radioesterelização é razoavelmente raro no Brasil porque envolve infraestrutura e custos, mas ele existe, assim como a pesquisa, que tenta entender quantidades de radiação e seus efeitos, e muitas vezes estão ligadas ao desenvolvimento de técnicas agroecológicas. Radioesterelização é uma forma de aumentar o tempo de prateleira, e especialmente quando se fala de um cultivo sem uso de venenos, evitar que ovos de insetos que estejam dentro dos grãos se desenvolvam pode ser particularmente importante. Em grãos é mais comumente usado com milho, feijão, arroz e amendoim.

O curioso foi que depois que expliquei que poderiam ser uma dessas duas coisas – idade do grão ou radioesterelização – a pessoa ficou um pouco incrédula com essas hipóteses. Me disse que era uma semente de origem agroecológica, fez questão de fotografar a embalagem e me mostrar o perfil da propriedade rural que a produz. Na sua fala, a semente tinha vindo direto do produtor, e tudo aquilo que eu dizia parecia colocar em cheque a idoneidade do produto e, portanto, pareceu a ela muito estranho.

Para além dessas questões técnicas de armazenagem e estocagem, sobre as quais não costumamos saber nem pensar pralém de avaliar a data contida no pacote, tenho pensado muito em como a expressão direto ao produtor tem sido usada como uma forma de expressar confiança.

Desde que voltei a morar em Belo Horizonte, tenho prestado atenção nas formas como essa expressão aparece – e curiosamente, ela parece ser mais frequente na capital do que no interior, onde o produtor de fato está. Além dessa situação no instagram, já enxerguei a expressão impressa em barracas de feira na rua, na boca de vendedor dentro do mercado, na fala de uma amiga pra destacar a origem de algo no lugar da palavra “artesanal”. Mas o curioso é que nada disso que vi até o momento se parece muito com ter de fato acesso ao produtor como a expressão deveria indicar.

produtor rural
Luiz, produtor rural agroecológico do interior do Paraná, colhendo ervilhas na sua propriedade

Zona rural x Espaço urbano

Vindo de um contexto de anos morando num interior pequeno e agrícola, pra mim é fácil perceber como a ideia de produtor é muito diversa do tipo de contato que eu tive. Quando a pessoa que está na sua frente não é a que plantou e sim a que está vendendo, ela não é a produtora. Ela é a vendedora – e talvez, uma atravessadora. Isso é visível seja pela cara e apresentação dos produtos, que também tem uma ausência de defeitos e uniformização bem maior do que geralmente o direto acaba imprimindo, ou pelo fato de que vendedor precisa ficar disponível o dia inteiro na barraca em diferentes pontos da cidade durante a semana.

Não estou aqui fazendo um juízo. Não tem nada essencialmente errado em ter uma pessoa diferente que produz e outra que vende. Plantar, higienizar, organizar e vender são coisas demais de serem feitas por uma única pessoa, e esse assunto volta e meia aparecia nas minhas conversas com os agricultores no interior – que de fato, eram os responsáveis por todo esse processo naquela cadeia que era tão curta. O que me chama atenção e incomoda é o uso da expressão direto do produtor, porque em alguns casos ela tenta dar uma percepção de proximidade e confiança que não me parecem completamente coerentes.

O próprio rótulo, que a pessoa no instagram fez questão de fotografar, me dá sinais de que o produto deve vir de algum tipo de agroindústria. Isso não diz muito sobre o tamanho da produção. Há agroindústrias de todos os portes; há agroindústrias de grande, de médio e de pequeno porte, e há inclusive agroindústrias familiares. Mas a existência do rótulo marca que existe uma cadeia um pouco maior, com mais mão de obra, que inclui algum tipo de beneficiamento com consequente valor agregado ao produto.

No caso do milho de pipoca, é possível que ele tenha passado por algum tipo de separação que garanta grãos mais uniformes. Talvez a radiação tenha sido usada, já que é um milho orgânico, muito suscetível de contaminação por insetos. Por ser alimento orgânico, a rotulagem também faz parte desse beneficiamento. Ela identifica o produto, atesta a origem e é até uma exigência legal.

O valor agregado, além da uniformização de grãos, da durabilidade mais longa e da identificação, que permitem cobrar valores melhores pelo produto – o que, do ponto de vista do produtor, é ótimo e muito desejável -, é também a possibilidade de alcançar vôos mais longos. Produtos com rótulos podem ser vendidos em diferentes pontos, o que é um valor agregado e tanto já que um dos problemas é a distância do local onde a produção é consumida.

A verdade é que grandes centros urbanos são paradoxais e cheios de contradições. Apesar do campo ser o lugar da produção, é nas grandes metrópoles que você tem acesso a uma quantidade de coisas diferentes que parece muito maior do que nos interiores. São muitos gêneros alimentícios vindos de importação, ou ainda de outras regiões do país, o que no caso do Brasil não é pouca coisa em termos de distância. É verdade que essas possibilidades quase sempre custam dinheiro, muito dinheiro, mas elas estão disponíveis – e vira e mexe, agora que estou de volta à capital, eu fico encantanda com algumas dessas possibilidades que antes eram inacessíveis pra mim no interior.

Mas de um modo geral, essa diversidade reflete ainda muito pouco do localismo da produção. Isso também é parte da dificuldade de você ter dificuldade de acesso ao produtor nesses locais – seja porque ele não está de fato naquele lugar, seja porque a distribuição nesses locais precisa passar por algum tipo de agroindustrialização pra ser possível. E essa é uma questão séria, que também ajuda a entender o porquê de termos algumas limitações quanto a biodiversidade daquilo que temos acesso na alimentação.

colheita de tansagem na zona rural
Colheita, feita por mim, de um molho de tansagem em uma propriedade rural

Biodiversidade e as distâncias

O botânico John Warren em The Nature of Crops conta que cientistas britânicos de Kew Garden estimam que pelo menos a metade das 400.000 espécies vegetais existentes podem ser consideradas comestíveis. E na realidade, nós fazemos uso rotineiro de mais ou menos só umas 200 delas. Metade das calorias que toda a humanidade ingere vem de apenas 3 espécies: milho, arroz e trigo. Há uma discrepância muito grande entre esses números. É claro que existem outros fatores que condicionam essas nossas escolhas (o modo de reprodução das plantas e a facilidade de domesticação está entre elas, e o livro de Warren trata essencialmente disso), mas é bastante evidente que existe um potencial imenso de uso de outros cultivos na alimentação humana que reflita mais o localismo, a diversidade, e a cultura de diversos povos.

Pra isso ser possível não adianta apenas incentivar que as pessoas conheçam coisas diferentes. É preciso também que as cadeias sejam mais curtas. Algumas espécies não chegam mais frequentemente até nós pela dificuldade de transporte – são frágeis e “machucam” com facilidade -, outras porque tem um tempo de prateleira muito curto, o que é inviável se você precisa vencer grandes distâncias e ainda distribuir, como acontece no contexto das grandes cidades (a jabuticaba é um ótimo exemplo disso).

Quer dizer, é uma via de mão dupla. O sistema em que vivemos hoje – de desertos produtivos de comida X o campo que produz todos os alimentos – só é possível com mais ou menos esse leque de alimentos que hoje temos disponível. Mudar o número e o tipo das espécies que comemos passa por também repensar a logística, a estocagem, o transporte, enfim, a distância física e cultural com que esses alimentos são produzidos.

paisagem rural
Paisagem da zona rural do interior do Paraná, em sistema de monocultura

A radiação, ainda que seja interessante pra se conservar grãos cultivados organicamente e que, por isso, tem um potencial maior de serem encontrados insetos, ainda é indicativo de uma distância grande a ser percorrida até chegar na mão de quem vai consumir. Também atesta uma necessidade de armazenamento razoavelmente longa, e uma percepção cultural que nós consumidores temos daquilo que é aceitável num alimento que compramos. Um grão com alguns carunchos é visto como ruim, ainda que eles sejam tão comuns fora do contexto de uniformidade do supermercado.

Ainda que este seja o direto do produtor possível e mais comum nos grandes centros urbanos, é um direto do produtor não tão direto assim. O uso do termo, no entanto, esconde um pouco as questões que fazem parte dessa contradição. Fico pensando se a expressão, da forma como estamos usando, não vai levá-lo pro mesmo lugar que a gente coloca agora a palavra “artesanal”, que foi apropriada pelo marketing até que não significasse absolutamente nada. Talvez seja até por isso que direto do produtor começou a ser usado também pra falar não só de alimentos in natura, mas também pra fazer referência a alguma coisa que não passou por industrialização.

De toda forma, me parece um uso arriscado. Quando uma palavra começa a aceitar significados demais, ela corre o risco de ser tão pouco específica que você precisa de adjetivos e explicações adicionais pra dizer que direto do produtor é esse mesmo que a gente está falando. Não julgo que o uso seja feito de maneira maldosa, com o objetivo de enganar, mas talvez até essa flexibilização de chamar uma cadeia curta de direto do produtor diga de como estamos distantes de quem produz nos grandes centros urbanos, a ponto de não sabermos mais reconhecê-lo. Tenho minhas dúvidas de que seja possível perceber essa diferença com uma vivência exclusivamente urbana, mas é um exercício interessante olhar pra expressão e tentar pensar em que direto do produtor é esse que nós estamos falando, e qual é o que queremos.

O uso generalizado deixa a gente ver também que essa parece ser uma vivência desejada, que andamos carentes de estabelecer uma relação mais próxima e de confiança com as coisas que consumimos. É um desejo legítimo, e reconhecê-lo é importante pra evitar que mais uma vez ele se transforme só em mais uma contação de história no lugar de uma possibilidade de mudança.