Como usar o soro de leite

Soro de leite

Quem se aventura a fazer iogurte grego, kefir, coalhada seca, ou ainda queijo fresco, fica sempre com uma questão quando termina o processo. O que fazer com tanto soro de leite que sobra da coagem que é feita pra se chegar nesses produtos?

Não é pouca coisa o que sobra. Pra se ter uma ideia, com 3l de leite você produz cerca de 800g de coalhada seca, e tem uma sobra de pouco mais de 2l de soro de leite. É bastante coisa.

Esse liquido translúcido que sobra, no entanto, tá longe de ser desprezível. Primeiro porque ele é nutricionalmente bem rico, e também porque ele está cheio de leveduras interessantes. Então jogar fora é um mau negócio.

Essa questão não é exclusividade só de quem faz as coisas em casa. Soro de leite é um problemão na indústria, não por conta da fabricação de iogurte e coalhada, mas principalmente por conta do fabrico de queijo, que também precisa de muita drenagem.

Uma parte desse soro na indústria é comumente utilizada pra produzir ricota. Parece estranho que a ricota saia daquele líquido translúcido, mas a ricota industrial costuma ser produzida assim. No entanto, essa é uma alternativa muito pouco viável pra ambientes domésticos porque o volume de soro necessário pra esse tipo de produção é grande. Pra se ter uma ideia, é preciso de 20 a 25 litros de soro de leite pra produzir 1kg de ricota. Só quem tem uma pequena produção comercial consegue pensar nessa possibilidade.

Algumas pessoas vão sugerir colocar esse soro no preparo de sucos, ou adicionar em sopas e no preparo do arroz, como um jeito de você ir bebendo esse soro imperceptivelmente. Ou ainda, tomar uma colher dissolvida num copo de água em jejum pela manhã, como um remédio pra melhorar a digestão. Ainda que sejam possibilidades, pelo menos pra mim essas ideias não fazem nenhum sentido. Elas se preocupam só com o aspecto nutricional da coisa, e deixam de lado a preocupação com o prazer, com o sabor e alegria de comer algo que faça bem a todos os nossos sentidos. Por isso, as sugestões que vou dar aqui são as que me parecem coerentes com uma visão integral do que seja um alimento: algo que faz parte da nossa cultura, e nos faz bem fisicamente mas também psicológica e socialmente. É isso o que norteia as ideias que compartilho, sempre.

1. Substituindo o leite em receitas

O soro de leite é um bom substituto pro leite numa diversidade de receitas, especialmente as de panificação. Pães, bolos, tortas de liquidificador, roscas, panquecas, pão de queijo, todos eles tendem a ficar gostosos e manter a umidade e textura, que é o aspecto em que o leite costuma impactar nesse tipo de receita.

Esse tipo de substituição não é só um truque doméstico. Ele é muito bem estudado. Como o excesso de soro é um problema na indústria de laticíneos, existem muitos engenheiros de alimentos e químicos que se dedicam a pesquisar o uso do soro em diferentes alimentos. Você encontra artigos científicos relatando testes sensoriais, prestando atenção no gosto, na textura e nos valores nutricionais dos alimentos que são produzidos desse jeito. Pode ir que que não tem erro.

leite derramado
O soro de leite funciona muito bem em panificados, sem precisar fazer qualquer adequação
2. Como cultura para fermentar sucos

O soro que sobra do processo de fermentação do iogurte e do kefir, por conta dos lactobacilos ativos que estão dispersos no líquido, é um ótimo meio pra iniciar processos de fermentação.

Você pode adicionar uma colher de sopa no início do processo pra acelerar a fermentação de vegetais, como o repolho do chucrute, picles de pepino ou kimchi, ou qualquer outro vegetal que estiver fermentando. Mas a rigor, é uma adição desnecessária, e que em geral, resulta em sabores menos complexos.

O que mais gosto é de usar o soro de leite pra produzir sucos gaseificados que não usem frutas suculentas, e que por isso sejam facilitadas pela adição de uma colônia, como de gengibre ou hibisco. Eles também são possíveis de serem feitos sem precisar de uma cultura inicial. Mas por serem processos de fermentação que as vezes queremos acelerar, dou preferência por fazer a partir da inoculação de uma cultura. Acho que isso torna o processo mais acessível. E aí podem ser usadas tanto a levedura de pão quanto as que estão presentes no soro de leite.

Uma vantagem do uso do soro nesse processo é que fermentações usando esse tipo de cultura tendem a ficar com bolhas mais delicadas na língua quando comparadas com as que fazemos com leveduras de pão. Isso acontece porque essas leveduras que compramos são sepas selecionadas, não há nenhum tipo de competição no processo de fermentação. Isso é ótimo pra garantir que uma receita vá dá certo, mas também tira um pouco da sutileza que o processo natural tende a apresentar. No mínimo, vale a experiência pela curiosidade.

Suco fermentado
Suco fermentado de maracujá com carambola, cheio de bolinhas de gás produzidas naturalmente no processo, queestão na lateral do copo

Nesses casos é bom prestar atenção também no tempo que o soro está na sua geladeira. Na primeira semana a cultura estará ainda muito ativa, pois no soro existe ainda uma quantidade residual de lactose que mantém a colônia alimentada. Na segunda, essa quantidade começa a diminuir, e na terceira, embora o soro ainda possa ser usado, o resultado como fermentador tende a ser pouco entusiasmante. Então aproveite essa janela dos 7 primeiros dias pra produzir outros fermentados.

3. Remolhar o feijão e outras leguminosas

Quase todo mundo já ouviu falar naquele velho truque de deixar os grãos de molho da noite pro dia pra acelerar o cozimento.

Não é só um truque. Depois que você experimenta o gosto e a sensação física que fica ao comer um feijão feito dessa forma, eu diria que se torna indispensável. Na verdade, o efeito do remolho não é só hidratar e amolecer os grãos, mas principalmente fazer com que as enzimas de dormência da semente se quebrem. Com isso o processo de fermentação começa a acontecer, o que facilita muito a nossa digestão.

É difícil precisar o tempo adequado pra esse processo porque são muitas as variáveis do processo: o tipo de leguminosa que está sendo usada, se o grão está novo ou velho, como está a temperatura do dia. 8h é o mínimo, mas por conta de temperaturas em torno de 10 graus no inverno, já cheguei a deixar o feijão por 48h de molho, com trocas de água regulares.

Como o processo de fermentação tem início em meios ácidos, acidificar um pouco a água pode favorecer o processo. Não é indispensável, e veganos podem usar limão ou vinagre pra obter o mesmo efeito. Mas se você tiver soro de leite sobrando, vale experimentar. Além da acidificação, ele também vai trazer culturas que ajudam no processo. Adicione uma colher de sopa pra cada xícara de água que você colocar.

4. Adubo pra plantas

Depois das duas primeiras semanas, o soro de leite começa a mudar suas características. Ele vai acidificando porque a cultura segue transformando os açúcares do leite presentes no meio. Embora ainda sejam utilizáveis na cozinha, o paladar começa a ficar alterado. Nesse ponto, acho que o melhor uso pra ele é usar como adubo pra plantas.

O ideal é diluir esse soro, pois uma quantidade concentrada é capaz de matá-las. Como se sabe, a diferença entre o remédio e o veneno é a concentração.

Use a proporção 1:9. Isso significa que pra cada 1 medida de soro, adicione 9 medidas idênticas de água. Apesar de ter um PH ácido, o soro de leite, se usado corretamente, não causa acidificação do solo. Além da diluição adequada, evite usar esse composto pra molhar as plantas todas as semanas, especialmente se elas estiverem em vaso.

cantinho de plantas que precisam de cuidado intensivo
Quando tenho espaço, crio um cantinho para as plantas que precisam de cuidados intensivos, como adubação, o que facilita lembrar de usar o composto com soro
5. Para tratar plantas com doenças fúngicas

Uma outra forma de uso do soro na produção de comidas futuras é no tratamento de plantas que estejam com uma doença fúngica muito comum chamada oídio. Este é um método agroecológico estudado e recomendado pela Embrapa.

Você já teve alguma planta que começou a ficar com a folha esbranquiçada, como se alguém tivesse deixado cair farinha sobre ela? Isso é o oídio. Em jardins, ela é bem comum nos tomateiros, pepino, melancia, abobrinha, pimentão, e feijão, mas atinge uma diversidade imensa de culturas.

folha atacada pelo fungo oídio
Folhas do pé de urucum atacadas pelo fungo oídio

O mecanismo de controle mais provável de atuação do soro é pelo antogonismo natural entre fungos e bactérias. A cultura presente no soro do leite também facilita a modificação do PH favorável para proliferação do fungo.

Pra fazer o controle do oídio, a recomendação é diluir o soro, na proporção de 30% (para cada 3 partes de soro, dilua em 7 parte de água) e pulverizar semanalmente sobre as folhas da planta inteira. Como outros líquidos pulverizados nas folhas, procure fazer as aplicações ao final do dia. Nesse horário sol já não vai incidir sobre elas e o risco de queimaduras é menor. Continue as aplicações por pelo menos 4 semanas.