O processo amador de identificar plantas

Colheita de uvas do japão

Nas conversas que costumo ter nas redes sociais, muitas vezes as pessoas se mostram um pouco reticentes de identificar plantas. E é bastante compreensível. Apesar de plantas serem quase onipresentes, e indispensáveis pra nossa existência na terra, nós vivemos num contexto em que a nossa relação com elas é bastante artificial e mediada. Na convivência com elas nas cidades, as árvores quase sempre se limitam a ser uma espécie de mobiliário urbano, o matinho na calçada é uma praga a ser exterminada, e no supermercado as espécies que comemos estão sempre identificadas com placas. Nós quase não usamos a nossa habilidade de ler o verde.

Percebo dois erros acontecerem com alguma frequência. Algumas pessoas subestimam a quantidade de espécies que existem. O manjericão, por exemplo, compreende mais de 30 plantas diferentes. A diferença de sabor entre o manjericão roxo e o aniseto é tanta quanta a da água e do vinho. As pessoas costumam ser rápidas em identificar que a planta é um manjericão, o que é ótimo, mas ao mesmo tempo isso apaga as nuances da enorme biodiversidade de manjericões existentes.

O segundo erro muito comum é subestimar a dificuldade de perceber diferenças das espécies. Eu sempre gosto de lembrar que não é preciso ser botânica, taxonomista ou agrônoma pra poder identificar espécies que a gente vê por aí. Mas isso também não significa que esse processo seja fácil – especialmente praqueles que cresceram sem ter tanto contato com plantas.

Colheita de uvas do japão
No meio do mato, a colheita. Essa é a uva do japão (arquivo/jul. 18)

Quase sempre é preciso conjugar uma série de informações (suas percepções sensoriais, conhecimento de outra pessoas, pistas sobre o contexto onde a planta está, livros, imagens no google, uma chave botânica) pra se chegar numa resposta segura.

É bem comum ouvir a sugestão de usar aplicativos de identificação de plantas, como se eles dessem conta sozinhos de resolver esse problema. Eu costumo dizer que eles até podem ser úteis se você está tentando saber o nome de espécies muito conhecidas e ornamentais, que a gente encontra pra vender em floriculturas. Mas dificilmente a experiência será boa se você estiver procurando identificar plantas de biomas brasileiros específicos, como cerrado ou caatinga. Até mesmo matos na calçada podem ser frustrantes de serem identificados. Ele pode te dar pista de famílias, especialmente em plantas que possuam flores e frutos, mas mesmo assim é preciso ser bastante cauteloso. A Samantha Martins no Meteorópole escreveu sobre as dificuldades e as possibilidades que esses aplicativos de identificação proporcionam, é uma ótima leitrua pra melhorar a usabilidade desse recurso.

Mas então, sem subestimar a variedade e a sutileza que a tarefa de identificação de plantas envolve, como uma pessoa comum pode fazer isso?

O processo amador pode acontecer de várias formas, não há certo e errado. Eu costumo fazer esse tipo de relato com alguma frequência por aqui, mas agora que estou frequentando um bioma novo, e um ambiente novo, já que dessa vez estou tentando identificar espécies não mais na cidade e sim no meio do mato, muita coisa tem parecido muito pouco distinguível pra mim. É um ótimo exercício de começar tudo de novo.

CAMINHADAS NO CERRADO

O sítio da minha família é um espaço na zona rural próximo a Sabará-MG, na grande BH. Apesar de já terem alterado um bocado o espaço com a colocação de pasto, e até uma triste plantação de eucalipto, o que se vê em volta é bastante vegetação típica de cerrado, conjugada com um pouco de mata atlântica, já que aqui é uma área de transição. Parte dessa vegetação está preservada e outra parte nasce no meio das áreas degradadas de pastagens, que no momento estão abandonadas, sem animais.

Tenho andado por esse mato agora que estou de volta a BH, e isso tem me feito observar bastante coisa. Quando voltei do Paraná, comecei a dizer com um bocadinho de pesar que agora eu tinha mais conhecimento sobre vegetação e sazonalidade de lá do que de Minas, que é meu estado natal. Nada mais natural que eu esteja com muita vontade de entender as coisas que tem por aqui.

Tenho feito pequenas caminhadas semanalmente, e dentre pequenas frutinhas que ainda não identifiquei totalmente, flores interessantes e outras coisas notáveis que encontrei, uma árvore muito espinhuda me chamou atenção. Ela era uma verdadeira armadilha. Sabe quando você passa num lugar e arranca uma folha de uma árvore desavisadamente? Pois com essa não tinha como. Várias das folhas tinham espinhos na face ventral, de modo que se você fizesse isso certamente iria espetar feio o seu dedo.

Espinhos que ajudam a identificar a planta
Espinhos no galho, mas repare que alguns deles saem da parte de baixo das folhas

O tronco também era uma coisa espetacular. Todo coberto de espinhos grossos, que chamavam muita atenção. E a árvore estava cheia de bolinhas que eu, apesar dos espinhos gritando tome cuidado, fiz questão de pegar e sentir o cheiro. Lembrava muito o fruto da aroeira, a pimenta rosa, uma árvore tão comum usada na arborização urbana. Era aquele cheiro doce, picante, que lembra especiaria. Opa! Aqui temos uma pista. Eu sei que aroeiras são várias. Será que existe uma espécie de aroeira do cerrado que tenha um monte de espinhos? Foi a primeira coisa que pensei sentindo o cheiro da frutinha.

Tronco com espinhos, que ajudam a identificar a planta

Tirei um pequeno galho. Não tinha levado uma máquina fotográfica nessa expedição, e estava muito próxima de casa. Eu precisava de alguma pista concreta melhor que a minha lembrança pra tentar encontrar uma resposta. Voltei pra casa com ele na mão, pra tentar responder essa pergunta.

A primeira coisa que fiz foi jogar no google aroeira + cerrado + espinhos pra ver se encontrava alguma coisa. De fato, tinha mesmo espécies de aroeiras mais frequentes no cerrado. Mas a verdade é que a aroeira mais comum, a Schinus terebenthifolia é uma espécie de ocorrência natural em diversos biomas brasileiros, incluindo o cerrado. Não encontrei nada parecido com aquela lá. Tentei então dar uma olhada nas espécies da mesma família (que é a Anacardiaceae, a mesma do caju e da manga) que fossem nativas do cerrado. Mas também não encontrei nada parecido com a árvore espinhuda que eu estava vendo.

Eu tinha esgotado os meus conhecimentos. O primeiro recurso pra identificar plantas é sempre o reconhecimento sensorial: ver, observar detalhes não só das folhas mas do tronco, das flores, de onde ela está, esfregar nas mãos e sentir a textura, o cheiro. E também já tinha usado meu léxiclo de plantas que conheço. Essa parte do repertório é sempre delicada, a gente começa as vezes de um conjunto bem pequeno, mas isso se constrói aos poucos. Tem várias famílias que eu consigo ter uma noção vaga do jeito da planta, e quando vejo uma nova com características semelhantes, consigo entender que possivelmente se trata de alguma coisa que faz parte daquele mesmo grupo. Ou, pelo menos, consigo dizer o nome de alguma coisa semelhante pra servir de pista.

Só que a árvore espinhuda não me dizia muito com as coisas que eu já tinha comigo, mas isso não significa desistir.

Abri o livro de Guia de Plantas do Cerrado que comprei recentemente, pra tentar ganhar um pouco mais de familiaridade com as plantas que estão em volta de mim agora. Comecei a folhear, assim a esmo, sem tentar localizar uma família específica. Folhear um livro de mais de 500 páginas, como é o caso desse guia, pode parecer um processo estúpido, mas na verdade, pra alguém que quer começar a construir uma ideia de famílias de plantas é uma das coisas mais interessantes que você pode fazer. Foi assim também que eu comecei a reconhecer plantas comestíveis.

Livro Guia de plantas do Cerrado
O livro Guia de Plantas do Cerrado, que adquiri recentemente pra brincar de dar nome pra paisagem que ando vendo agora (se tiver interesse em adquirir um igual, clique no link)

Por exemplo, enquanto eu folheava, achei uma graça perceber a semelhança de um gênero, as Mimosas. A planta mais conhecida delas pra mim é a Mimosa pudica, aquela planta que toda criança adora colocar o dedo só pra ver as folhas miudinhas se fecharem. Tem um monte de Maria fecha a porta – ou qualquer que seja o nome que você chame a Mimosa pudica, que são muitos Brasil afora – neste momento, floridas por toda a grama do sítio, e passei um tempo brincando com elas porque deus me livre de perder um pouco do encanto de ser criança. Elas soltam um pompom rosado charmoso e bastante característico. Achei o máximo enxergar que todas as Mimosas tem o mesmo tipo de pompom, e mais ou menos o mesmo tipo de folha. Eu nunca imaginei que existissem tantas mimosas, e que o cerrado fosse a casa de tantas delas.

Um livro do cerrado aberto na página das mimosas, da família das Fabaceas
A página do livro do Cerrado aberto mostrando uma imensa variedade de Mimosas parecidas porém diferentes

Esse tipo de observação despretensiosa que se vai fazendo enquanto folheia vagarosamente um livro imenso em busca de uma planta específica, é um tipo de léxico que você vai adquirindo, e que aos poucos impacta na quantidade de coisas que você consegue ler no ambiente. É um tipo de léxico afetivo, que você vai notando porque acha a planta especialmente bonita, porque ela te lembra alguma outra coisa, porque você consegue ver uma semelhança fácil com alguma outra. Não é muito diferente de adquirir uma linguagem. Aprender sobre plantas de maneira amadora não necessariamente precisa ter um método.

Eu fiquei um pouco constragida por estar fazendo dessa forma, e resolvi conversar com minha amiga bióloga, que não é da área da botânica. Mostrei minhas fotos enquanto continuava a folhear o livro, e quando encontrei e voltei às mensagens, ela tinha acabado de me enviar uma resposta. Ela também chegou nessa planta pelas minhas fotos e algumas coisas que contei a ela, e o caminho que ela usou foi a mesmo. Ela esgotou o léxico próprio de plantas parecidas e famílias em que ela poderia arriscar, e em seguida procurou num catálogo que ela tem, sem ter um metódo.

As vezes funciona, as vezes não. Nós estamos brincando de identificar uma outra planta, e embora a gente já tenha chegado na família, e já tenha encontrado o gênero, nós estamos com dificuldade de bater o martelo sobre a espécie. Estamos aguardando os frutos madurarem, já que é assim que a distinção aparece na chave botânica. Acontece, e é parte da graça pra quem é um naturalista amador seguir observando e procurando pistas pra se chegar numa conclusão adequada.

E a árvore espinhuda, o que era?

A arvoré espinhuda que eu estava procurando, encontrei quase no final do livro, na família das Rutaceas. Eu jamais suspeitaria porque o exemplar dessa família que me vem mais rápido à cabeça é a arruda, que é muito diferente da minha árvore espinhuda. Mas depois, tentando entender o que caracteriza essa família, descobri que os cítricos também pertecem a ela, e começou a fazer um pouco mais de sentido. A árvore é a Zanthoxylum rhoifolium, popularmente conhecida como Mamica de porca, porque os espinhos do tronco supostamente lembram tetas de porca. O nome científico do gênero Zanthoxylum vem do grego Xanthon xylon, que significa “madeira amarela”, característica que é exibida pelas mais de 500 espécies de Zanthoxylum que existem espalhadas no mundo tropical afora.

É uma planta nativa do cerrado, que se espalha até a amazônia, e que é conhecida por conta das suas propriedades medicinais. Estranhamente não são os frutinhos cheirosos que tanto me atraíram que são a parte mais reportada como útil, e sim as folhas e a casca da árvore. Há pesquisas falando sobre suas propriedades analgésicas. O macerado de folhas pode ser usado topicamente para tratar dor de dente e de ouvido. E a decocção da casca, que tem sabor amargo, pode ser usada para cólicas. gases e dores de estômago.

Mas os frutos também não fazem por menos. Embora seja raro encontrar menção a eles quando se faz uma pesquisa comum no google, encontrei trabalhos científicos relatando potencial antibacteriano e antifúngico do óleo essencial dos frutos verdes e maduros da planta. O potencial é tão interessante que a recomendação é para exploração na agricultura, indústria alimentícia e cosmética. Embora em nenhum local eu tenha encontrado informação sobre toxidade deles, também não encontrei algo que me dissesse que sim, eles são comestíveis. Cheirosos eu posso dizer que eles são, principalmente quando estão frescos – o cheiro diminui bastante depois de secas.

Frutos da mamita de porca
Os frutos da Mamica de porca, encontrados numa caminhada na zona rural de Sabará em março/2021

A melhor parte foi que no dia seguinte, resolvi andar em outro espaço. Não era nada muito longe dessa descida onde encontrei a primeira Mamica de porca, e comecei a ver um monte dessas árvores. Não é a primeira vez que eu tinha caminhado desse lado, e embora eu não me lembre, eu tenho certeza que elas já estavam lá. Eu já vivenciei esse fenômeno um tanto de vezes, de identificar uma plantinha e começar a ver ela pra todo lado na cidade, e me dar conta do quanto eu não estava vendo antes. Eu achei extraordinário perceber, pela primeira vez, que sou capaz de fazer isso também no meio do mato. Que sou capaz de ver repetidamente uma árvore, no meio de um emaranhado, e a paisagem começar a ganhar sentido. E isso é pra mim o que mais me faz sentir que estou aprendendo.