Como fazer um fermento selvagem de gengibre (gingerbug)

O refrigerante, o fermento selvagem de gengibre e o gengibre sob a janela

Eu tenho uma receita aqui no site em que ensino a fazer um refrigerante de gengibre, em que eu tento explicar o que cada ingrediente adicionado faz ou tem de função na receita, pra que quem estiver lendo possa ter autonomia de fazer o seu. Naquele post eu sugiro usar fermento de pão porque é um ingrediente muito acessível. Só que produzir refrigerante com fermento de pão deixa um certo defeito no sabor: ele fica com gosto de fundo que lembra pão quando está sendo feito, e isso não é lá muito o que você procura num refrigerante.

Existem outras técnicas pra se produzir refrigerante em casa com diferentes resultados, que eu costumo explicar nas oficinas de refrigerante caseiro que já dei. Você pode usar levedura de espumante, um pouco de kombucha ou soro de iogurte, por exemplo. Ou pode também produzir um fermento selvagem a partir de uma fruta ou ingrediente in natura, e manter esse cultivo pra sempre ir produzindo.

O que eu vou explicar neste post é como você pode produzir uma dessas colônias selvagens a partir do gengibre. A técnica é muito parecida com a do levain, o fermento de pão que a gente produz a partir de farinha, água e um bocado de paciência. O resultado dos refrigerantes feitos com esse fermento selvagem de gengibre são muito superiores aos feitos com fermento de pão, mas exigem um pouco mais de paciência. Se você tem interesse em fazer esse tipo de bebida gaseificada a partir do suco de qualquer fruta, recomendo muito a leitura desse post pra entender o processo todo e fazer uma tentativa.

Porque “fermento selvagem”?

Eu chamo esse tipo de fermento de selvagem porque diferente dos que vem num pacotinho e que são culturas manipuladas em laboratório – como o fermento de espumante, vinho, pão ou de cerveja – esses daqui a gente tenta capturar na superfície dos vegetais e é uma verdadeira incógnita o que vai sair.

Isso acontece porque os microorganismos estão em todas as coisas que consumimos, e numa variedade de espécies enorme. Algumas frutas, raízes e cereais são naturalmente colonizadas por culturas muito conhecidas, como a levedura Saccharomyces cerevisiae, que está nos auxiliando nas nossas cozinhas há muitos anos. Essa é a levedura que é vendida no supermercado – depois de isolada, processada e pulverizada – para fazer pão, cerveja ou espumante.

Além dos pacotinhos, a S. cerevisiae também pode ser encontrada naturalmente na casca das uvas, no grão do trigo, e em muitos outros lugares. Nessas situações, no entanto, ela nunca está exatamente sozinha. Ela está junta com diversos outros microorganismos, numa existência pacífica mas também um pouco anárquica. É por isso que eu chamo esse tipo de cultura de selvagem, no melhor sentido da palavra.

No fermento selvagem do gengibre nós também estamos lidando com a Saccharomices cerevisiae, mas em conjunto com alguns outros bacilos que também estão naturalmente na raiz. Juntos eles produzem flavonóides e polifenóis especiais que nenhum pacotinho comprado é capaz de proporcionar.

Tá, mas ‘selvagem’ significa que tem algum risco?

Não existe um risco de desenvolver patógenos – microorganismos que seriam prejudiciais pra gente – se forem observadas algumas regras simples de boas práticas. Dá pra garantir isso porque durante o processo de fermentação há a acidificação do meio, o que inibe a proliferação de bactérias nocivas ou que causam o apodrecimento desgovernado. As próprias leveduras se encarregam de garantir a sua sobrevivência criando um meio hostil pra que outros microorganismos rivais não apareçam.

Mas por estarmos lidando com organismos muito diversos e que não temos como controlar completamente, é possível desenvolver algo indesejável. Pode aparecer algum tipo de mofo, um cheiro desagradável, ou mesmo que o processo não vá pra frente. Em todas essas situações você vai perceber que existe concretamente algo errado. Vai encontrar uma mancha esverdeada na superfície, um cheiro desagradável, uma mudança de cor estranha, o não aparecimento de algumas reações no processo. Se alguma dessas coisas acontecer, descarte e recomece. Tudo isso é parte de lidar com o selvagem.

Por onde começar

Eu sou adepta de uma ideia de fermentação sem grande preocupação com esterelidade porque sei que isso não existe no ambiente doméstico. Isso significa que nas várias vezes em que eu apresento alguma receita de fermentado por aqui – como o refrigerante de jabuticaba – eu não costumo recomendar que se faça a esterelização de utensílios. Eu sugiro apenas a higiene regular com água e sabão mesmo.

O Sandor Katz é um autor que tem essa mesma abordagem. Ele escreve no prefácio de um dos seus livros que essa lógica de esterelização parte de uma falta de familiaridade com esses processos de fermentação nas nossas cozinhas, o que vem acontecendo desde a revolução industrial. Nós aprendemos a temer esse tipo de processo, assim como qualquer outra coisa em que parece que a gente não tem controle, como se fossem perigosos.

livro wild fermentation, de sandor katz

De toda forma, como eu disse anteriormente, a cultura selvagem pode ser delicada porque a gente não sabe que outros organismos podem estar em equilíbrio na superfície de um ingrediente. Se você não tem muita familiaridade com fermentações, o que é muito compreensível, e quiser se sentir mais seguro, ou ter mais controle do processo, inicie fazendo uma higienização mais rigorosa dos seus utensílios.

O mais comum é aconselharem a higienizar vidros pela fervura em água quente por 10 minutos, mas sempre achei esse método desajeitado – os vidros não cabem direito na panela, são dificeis de manipular com a temperatura quente, e o processo gasta bastante gás. Mas essa não é a única forma de fazer isso. Eu prefiro fazer usando imersão em solução de água sanitária, como se faz com as verduras. O efeito é exatamente o mesmo.

Prepare uma solução de água + hipoclorito de sódio na proporção de 1%. Isso significa que pra cada litro de água você deve usar 1 colher de sopa de água sanitária comum. Preste atenção pois não pode ser água sanitária misturada com outros ativos ou que tenha algum perfume (como acontece no Lysoforme). Ela deve ter apenas hipoclorito de sódio, com cloro ativo. Você encontra isso escrito na embalagem.

Encha o vasilhame onde você vai fazer o seu cultivo selvagem com essa solução de hipoclorito. Deixe por 10 minutos, e em seguida, descarte essa solução e enxague com água corrente.

E por falar em vasilhame, esse é outro assunto importante sobre o qual vale a pena conversar.

A escolha do vasilhame

No livro Fermentação a brasileira os autores sugerem que você use uma garrafa plástica pra fazer essa cultura. O argumento deles é de que na garrafa plástica é mais fácil perceber se os microorganismos estão ativos porque eles produzem gás carbônico, o que deixa a garrafa plástica dura e estufada.

Apesar de adorar esse livro, particulamente não acho essa a melhor ideia. O problema da garrafa plástica, a meu ver, são três. Primeiro porque é difícil fazer o gengibre ralado passar pela boca da garrafa. Além disso, é preciso lembrar que depois de fazer o fermento selvagem de gengibre, ela precisará ficar dentro da sua geladeira pra usar indefinidamente e produzir quanto refrigerante dos sabores mais variados que você quiser. Portanto, é preciso pensar bem no quanto espaço ocupar com isso. E por fim, justamente porque o fermento vai ficar na geladeira indefinidamente, pode acontecer de você precisar remover uma parte do gengibre de dentro do vasilhame caso ele comece a fazer muito volume. Do mesmo jeito que é díficil entrar com o gengibre, também vai ser difícil fazê-lo sair.

Além disso, não é preciso que a garrafa fique estufada pra você perceber que a colônia está ativa. Ela vai formar uma espuma com bolhas muito visíveis na superfície.

Eu sugiro fazer uso de algum pote de vidro que tenha uma boca mais larga, que seja grande o suficiente pra deixar metade dele com ar, e que tenha uma tampa que proporcione um pouco de vedação. A vedação é importante porque o processo dessa levedura é anaeróbio, e portanto a entrada de oxigênio dificultaria o processo e pode fazer com que ele leve mais tempo pra acontecer. Também pode causar a oxidação do gengibre, especialmente no início em que ele fica boiando na superfície, e o meio não acidificou e ele está vulnerável. Isso pode deixar ele escurecido e talvez com um aroma ligeiramente diferente. Não é perigoso, mas também não é a melhor opção.

Aqui eu uso um vidro reaproveitado de azeitona. Esses vidros são grandes o suficiente pra manter uma colônia e produzir pelo menos duas garrafas de 1 litro de refrigerante por semana.

Uma mão segurando um vidro de palmito que será usado para fazer o fermento selvagem de gengibre

Juntando os ingredientes

Se você jogar no google “Gingerbug” vai encontrar uma diversidade de métodos pra produzir esse fermento e bebidas a partir dela. A verdade é que ela é tão simples de se cultivar que não é preciso muito rigor com o que você vai fazer. Meu único conselho é: se você escolheu um método confie nele e siga, não misture com outras receitas que você viu por aí porque a chance de algo sair errado vai ser maior.

Eu vou sugerir uma proporção porque é bom ter uma noção e saber de por onde começar, mas a verdade é que você não precisa se preocupar em ser tão exato.

Para fazer o fermento selvagem de gengibre:

100g de gengibre ralado
300ml de água
15g (1 col. de sopa) de açúcar branco

Ingredientes para fazer o fermento selvagem de gengibre: água, açúcar e gengibre ralado

Coloque tudo no vidro escolhido depois de higienizado, e feche. Deixe o vidro num lugar escuro, longe da luz direta do sol.

Eu sugiro usar açúcar branco porque ele é bem mais digerível pelas leveduras, e por isso, o processo acontece muito mais rápido. Se você tiver algum tipo de restrição a açúcar branco, não se preocupe. A reação que estamos esperando que aconteça no vidro é a transformação dele em ácido láctico + gás carbônico. Quando você for beber, o açúcar vai estar inteiramente consumido ou numa proporção muito menor do que a inicial.

A parte mais importante do processo é você agitar o vidro pelo menos umas 5 ou 6 vezes no dia. Isso é importante porque as leveduras se depositam no fundo do vidro, formando uma espécie de poeira branca. É algo como nesta foto:

As leveduras do fermento selvagem de gengibre no fundo do vidro

É importante mexer pra que elas se dispersem no vidro e despertem mais rápido. Conforme elas vão se ativando, o líquido vai ficando menos adocicado e elas criam um meio ácido que impede que outros microorganismos se desenvolvam, como expliquei no início. Fazer com que ela multiplique rápido, neste caso, não é uma bobagem, acredite. É desse jeito que estaremos impedindo que outras coisas indesejadas cresçam e o fermento selvagem de gengibre dê errado.

Se você não tiver disponibilidade pra sacudir o vidro tantas vezes ao longo da semana, tente iniciar o processo na sexta a noite, pra dar essa assistência mais de perto nos primeiros dias, que são mais sensíveis.

Outra etapa importante é abrir o vidro rapidamente uma vez no dia, pra liberar o gás carbônico que porventura começar a se formar, e inibir o crescimento de outros microorganismos anaeróbios.

E aí é só insistir e esperar.

Quanto tempo leva?

Essa é uma pergunta que não tem como ser respondida. O processo é muito dependente da temperatura. A melhor medida não é o tempo mas os sinais físicos de que o processo está se desenvolvendo: no início inalterado, em seguida o aparecimento da poeira branca no fundo, depois a flutuação do gengibre na superfície porque algum gás começa a ser produzido, e por fim uma espuma com bolhas que se forma na superfície. Neste ponto a sua colônia está pronta pra ser usada.

Observe também o cheiro. Ele é agradável durante todo o processo, e vai ganhando aos poucos uma aroma de alguma coisa levedada – nunca “azeda”, repugnante, ou com a textura viscosa.

Como usar o fermento selvagem de gegibre pra fazer refrigerante

Agora que a sua cultura selvagem já está com bolhas, é hora de tirar uma parte pra fazer refrigerante e fazer a manutenção dela.

Dá pra fazer refrigerante de quase qualquer sabor de fruta e especiarias usando essa cultura e seguindo algumas regras – como não deixar nenhuma parte sólida de fruta sobrenadante -, mas aqui vou explicar detalhadamente como fazer o refrigerante de gengibre.

Faça cerca de 1 litro de suco batendo no liquidificador suco de limão, lascas de gengibre, água e açúcar de acordo com a sua preferência. Procure deixar ligeiramente mais doce do que você gostaria, mas não melado. Lembre-se de que o açúcar vai ser consumido e transformado em gás carbônico nesse processo. É assim que o refrigerante vai ficar gaseificado.

Coe para retirar as fibras do gengibre e coloque o suco dentro de uma garrafa. Acrescente então pra essa medida de suco 1/4 de xícara apenas do líquido do fermento selvagem de gengibre que foi cultivado.

Feche tudo numa garrafa com boa vedação. Pode ser de plástico, de vidro (desde que você vigie o processo de produção de gás), ou mesmo uma garrafa própria para produzir refrigerante ou kombucha. Aguarde alguns dias. Se você já experimentou fazer refrigerante com fermento de pão ou levedura de champagne, tenha em mente que com o fermento selvagem o processo de gaseificação vai levar mais tempo. 3 a 5 dias podem ser suficientes, mas assim como na produção do fermento selvagem, o tempo é variável por conta das condições climáticas, e é preciso ficar atento. Procure abrir a garrafa todos os dias pra saber como está evoluindo.

Quanto mais tempo ficar à temperatura ambiente fermentando, menos açúcar a bebida vai ter. O barulho na abertura é o indicativo de que ela já tem gás, e pode ser colocada pra gelar. O refrigerante pode ficar muitos dias na geladeira aguardando o melhor momento para ser bebido.

Depois de engarrafar, realimente o seu fermento selvagem. Acrescente 1/4 de xícara de água com 1 colher de chá de áçucar branco. Feche e agite, e espere as bolhas na superfície reaparecerem. Quando acontecer, coloque na geladeira, pra diminuir o metabolismo do fermento. Ele dura bastante tempo desse jeito mesmo que você não use. Só evite deixar ele mais de 1 mês seguido sem alimentar. Se acontecer, abra, descarte 1/4 de xícara do líquido, e acrescente a solução de água com açúcar mais uma vez. Eventualmente você pode colocar algumas lascas de gengibre pra fortalecer seu fermento selvagem.

Pra usar novamente e fazer outro refrigerante é só retirar da geladeira e colocar novamente 1/4 de xícara de água com 1 colher de chá de áçucar branco, e, mais uma vez, aguardar as bolhas na superfície surgirem.

Seguindo esse ritmo, seu fermento selvagem de gengibre vai estar um pouco mais domado, e ficará com você por quanto tempo você quiser.

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