Brotos pralém das saladas: Rolinho primavera vietnamita

os rolinhos primavera feitos com os brotos de moyashi sobre a mesa, servidos

Duas coisas acontecem todas as vezes que divido nas minhas redes sociais sobre o processo de se germinar grãos em casa pra fazer brotos comestíveis. A primeira é que as pessoas não sabem muito bem o que fazer com os brotos além de salada – e o final desse post foi feito especialmente pra ajudar nisso, aumentando o repertório com uma receita versátil de rolinho primavera vietnamita.

Mas a segunda questão é mais complicada. É essa ideia de que os brotos e outros alimentos crus e germinados teriam uma certa superioridade nutritiva, e que pra se manter saudável seria necessário comer uma quantidade desses alimentos. Enquanto pra alguns esse foco na saúde é o motivo que os leva comer brotos, uma parte das pessoas nem chega a se interessar direito por eles justamente por causa dessa ideia. E eu mesma me considero parte desse segundo grupo.

Broto de feijão para fazer rolinho primavera vietnamita

A maioria das pessoas que escrevem com frequencia sobre brotos e grãos germinados costuma praticar um tipo de dieta chamada “dieta viva” ou crudivorismo. A lógica dessa dieta parte do princípio de que os alimentos que não passam por cozimento seriam capazes de manter sua vitalidade – pois seriam alimentos vivos -, enquanto que os demais, por estarem mortos pelo cozimento, essa caraterística estaria perdida.

Dentro dessa dieta, comer brotos e outros alimentos crus têm um caráter animístico, onde são atribuídas características para os alimentos (como ‘cheios de vitalidade’), e quem comer esses alimentos seria capaz então de incorporar essa essência.

Ver outros seres, objetos e alimentos como portadores de uma essência não é algo exclusivo da dieta viva. Outras cosmologias, como o hinduísmo com as recomendações da ayurveda, a cozinha de santo dentro do Candomblé Ketu, além de outras práticas de várias etnias indígenas, também costumam ter uma visão parecida sobre alimentos. Muito do que é comido é uma forma espiritual de se conectar, e de incoporar ou reforçar qualidades que estão originalmente presentes naqueles corpos animais e vegetais que comemos.

A grande questão é que no caso da alimentação crudívora, a justificativa pra essa incorporação não está na conexão com um deus, uma força maior ou algo sobrenatural, mas na ciência. É pela superioridade de nutrientes, pela purificação e desintoxicação do corpo promovidos, pela alcalinização – um conceito da química – que deve ser estimulada no sangue.

A mistura de espiritualidade e ciência aqui é ruim porque não há nada cientificamente que a gente consiga medir que possa ser chamado de “vitalidade”. E do outro lado, apesar de ser verdade que alguns nutrientes acabam sendo perdidos no processo de cozimento, também é verdade que muitas moléculas são quebradas, e isso aumenta a biodisponibilidade de vários outros nutrientes, que teríamos dificuldade de absorver e digerir se eles estivessem crus. Isso sem entrar no mérito da alcalinidade e da desintoxicação.

São justificativas que não se sustentam como ciência, e que por vezes ainda esbarram nos vícios e problemas da própria linguagem científica, que também não é perfeita. A linguagem científica centrada em nutrientes parece cheia de tecnicidades, precisão, e rebuscamento, mas também é uma linguagem que alimenta o medo, insegurança, e demonizações. Elas enfatizam o aspecto nutricional dos alimentos isolados sem se ater a questões sociais, históricas, culturais, afetivas entre outras da nossa alimentação. E tem até nome pra esse defeito, cunhada pela própria ciência: é nutricionismo – uma junção de nutrição + reducionismo.

Livro nutricionismo
Os alimentos podem ser divididos em ‘bons’ e ‘ruins’? Esta questão é discutida neste livro sobre o qual já escrevi

É compreensível então que esse tipo de lógica afaste algumas pessoas. É uma visão de crença que apesar de ter essa tônica espiritual válida, também se aproxima demais de entender a comida como combustível, e apoiado em uma evidência frágil.

Por que comer brotos então?

Eu tive de me afastar desse tipo de discurso pra conseguir perceber outras características que me interessavam nos brotos. Eu como porque acho saboroso. Gosto mesmo. Cada grão germinado tem um gosto diferente e eu adoro explorar isso. Acho esteticamente bonitos, e gosto também de ser um processo longo com o qual me envolvo e vou criando minha própria comida dentro de casa por dias. Sinto que tem cara de brincadeira de germinar feijão no algodão no jardim de infância, e ver os grãos se desenvolvendo em potes de vidro me parece encantador.

Uma tábua com vários brotos de feijão em close

Eu tento abrir uma outra ótica, como uma coisa que você pode experimentar e fazer, que é diferente do que se encontra no mercado, que é acessível e barato, e te envolve numa tarefa muito distinta na cozinha. Mas sei que enfrento algo muito delicado. Essa ideia de uma superioridade moral de alguns alimentos não é exclusividade do crudivorismo. A busca do “alimento saudável” é uma prisão tão complicada quanto aquela do corpo perfeito, que a gente conhece bem. E muitas vezes é difícil reconhecer que esse comportamento possa causar sofrimento.

Se esse discurso da saúde superior dos brotos e do crudivorismo também não forem pra você, deixe ele pra lá. Procure outras pessoas, conheça outras práticas e receitas. Saiba filtrar, e pegue pra você só aquilo que te faz bem. Não deixe de experimentar algo diferente porque algumas pessoas têm ideias com as quais você não se sente confortável.

Por isso mesmo, trouxe uma proposta de receita com brotos que não bebe em nada nessa lógica. E que, de quebra, também não é uma salada.

Outras culinárias com brotos

Uma coisa que amo na culinária do sudeste asiático é que muitas receitas não tem uma preocupação muito estrita com quantidades. É uma cozinha descontraída, com forte tradição de comida de rua, em que você deve se preocupar com equilibrar sabores muito mais do que medir ou ser rígido.

As medidas que estou dando são adaptadas de um livro de cozinha tailandesa que adquiri depois de fazer um curso em Bangkok. Grande parte das quantidades nesse livro está em termos de “a handful” (ou “uma mãozada”). Portanto, são medidas aproximadas. Se você já comeu rolinhos primavera vietnamitas em algum lugar, use essa referência de sabor pra chegar lá. Se não, prove o seu, e adeque pro que funciona pro seu paladar.


Esse rolinho primavera funciona bem como entrada, pra acompanhar uma bebida num encontro descontraído em que você quer fazer bonito, e até mesmo como prato principal num almoço gostoso de domingo.

Os rolinhos primavera feitos com os brotos de moyashi sobre a mesa, servidos

Rolinho primavera vietnamita (para 2)

8 folhas de arroz
100g de bifum
100g de brotos de feijão moyashi
1 cenoura média ralada
1 pepino pequeno cortado em tiras
1/4 de xícara de coentro picado
1 folha de alga nori (de sushi) cortada em retângulos
Gergelim preto

Para o molho

1 tomate grande
1/3 de xícara de amendoim torrado sem pele
1 colher de sopa de óleo de gergelim torrado
1 colher de sopa de shoyu
Suco de 1/2 limão
1 colher de sopa de molho de ostra vegetariano (acrescente mais açúcar e shoyu se não tiver)
1 colher de chá de açúcar
Pimenta fresca ou seca à gosto

Um pacote de feijão moyashi, com o qual se fazem os brotos
  1. Você pode começar fazendo seus próprios brotos de feijão moyashi. Eles são feitos usando esse tipo de feijão redondo e verde da foto, que também é chamado de feijão mungo. 2 colheres de sopa é suficiente pra produzir a quantidade dessa receita. As instruções são semelhantes com essas que já publiquei por aqui sobre fazer brotos de lentilha, porém leva um pouco mais de tempo. No instagram, tenho um destaque salvo que mostra bem detalhado o passo a passo com o feijão, e você pode usar como referência também. Mas se quiser e tiver acesso, também pode comprar pronto no supermercado.
  1. Faça o molho. Coloque todos os ingredientes num processador ou liquidificador e bata. Prove pra acertar o sabor. Ele deve ser francamente picante, azedo, salgado, e levemente adocicado. Coloque em uma vasilha para servir, e se quiser enfeite com gergelim preto por cima. Reserve.
Molho do rolinho primavera vietnamita
  1. Passe então para a parte dos rolinhos propriamente. A melhor coisa a se fazer é preparar todos os ingredientes que vão ser usados e deixar numa tábua. Disponha os brotos lavados, rale a cenoura, corte o pepino em tiras, pique o coentro, use uma tesoura pra cortar retângulos da alga.
  2. Cozinhe o bifum em água quente, e deixe ao lado dos legumes para a montagem;
  3. Arrume uma vasilha que caiba a folha de arroz seca inteira, sem dobrar. Encha a vasilha de água potável, em temperatura ambiente.
  4. Mergulhe a folha de arroz por 1 minuto. Esse tempo é suficiente para amolecê-la e usar. Não deixe mais do que isso pois dificulta manipular;
O papel de arroz, que se compra em empórios orientais
Essas são as folhas de arroz, ou rice paper. Você encontra pra comprar em empórios orientais físicos ou online
  1. Retire a folha de arroz hidratada da vasilha, coloque sobre a bancada da cozinha e comece a recheá-la. Coloque no centro do círculo um punhado de cada um dos legumes previamente cortados: os brotos, a cenoura, o pepino, o coentro, a alga, o bifum e o gergelim. Tome cuidado pra não encher muito pois você precisará fechá-los;
  2. Feche os rolinhos. Pegue duas laterais opostas e dobre por cima do recheio. Em seguida, use uma das duas laterais que sobraram pra fechar e formar um rolinho. Coloque num prato. Repita o processo até finalizar todos os rolinhos.
  3. Sirva os rolinhos com o molho preparado ao lado. Os rolinhos primavera vietnamitas devem ser comidos colocando em cada mordida uma colherada generosa de molho por cima.
Rolinho primavera sendo comido, com uma colher generosa de molho sendo colocado depois de morder

Os legumes que sugiro costumam ser acessíveis e a combinação dessa receita é bem equilibrada em sabor e frescor, mas você pode usar outros legumes que tiver na geladeira. Maxixes no lugar dos pepinos, um pouco de repolho verde ou roxo cru, nabos ou rabanetes ralados, vagem manteiga ou vagem de metro (que também ficam bem cruas), manjericão aniseto no lugar do coentro e mesmo outros tipos de brotos frescos caseiros: tudo isso vai muito bem dentro desse rolinho. É pra aproveitar o melhor nas coisas que você encontrar por aí, porque saudável mesmo é se sentir bem com o que você está fazendo.

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