Se organizar pra cozinhar é conhecer o seu ritmo

fazendo comida

Eu tenho o costume de colocar grãos de molho pra serem germinados e comidos durante a semana na noite de domingo. Iniciar alguns desses processos longos de coisas que comerei durante a semana nesse dia, pra mim, faz parte de um ritual. É um gesto repetido, e junto com a casa arrumada que a faxina do domingo cedo me proporciona, ajudam a marcar um ritmo, uma sensação de coisa fresca e nova, de semana que começa.

Mas apesar do hábito, sempre tem o dia em que a gente não dá conta ou que sem querer se esquece. Faz parte. Mas quando me dou conta do esquecimento na manhã seguinte, se eu insisto em colocar os grãos de molho fora do horário habitual, é quase certeza que não vou encaixar a tarefa no meu cotidiano. Eu acabo esquecendo de tirar a água depois das 8h necessárias, no fim do dia, e eles acabam ficando mais de 12h submersos. Quando escorro, já na manhã de terça-feira, a espuma entrega: eles fermentaram, e não vão brotar mais.

Esse amontoado de falhas seguidas quando sem querer esqueço de fazer algo me faz pensar que o se ritual que eu criei dá certo não é só por causa da repetição. A escolha do horário em que as coisas são feitas também tem a ver com a minha disposição física pra seguir essa rotina. E isso também é essencial pro ritual dar certo.

Eu sempre defendi que fazer comida diariamente não é um processo simples, e que é um insulto quando alguém insiste em dizer que não dá trabalho nenhum, que é coisa de 15 minutos. Essa visão é parte da desvalorização que a gente cria em torno de tarefas domésticas de manutenção da vida. Fazer comida nos moldes em que a nossa sociedade se conforma, apesar de aparecer como uma tarefa secundária dentre as coisas que temos que fazer no dia, exige bastante planejamento, disposição e conhecimento. E não é só o conhecimento de técnicas, de ingredientes ou de um repertório de receitas. Cozinhar tem uma chance muito maior de funcionar quando você conhece o seu ritmo, os horários em que você está mais disposto, e o que você precisa respeitar pra se sentir bem.

Essa percepção sobre seu ritmo talvez você já tenha se construído um pouco sozinho, intuitivamente, observando o modo como você funciona e se sente melhor. Talvez você já tenha reparado que acorda naturalmente com a luz do sol, ou que funciona muito melhor na parte da tarde, ou é um grande notívago. Mas a verdade é que nem sempre dá pra experimentar as coisas de jeitos diferentes pra saber na prática, e isso compromete bastante as observações que a gente consegue fazer.

Mas é real essa percepção de que temos que temos disposições diferentes. E entender esse funcionamento pode ser importante pra gente achar um lugar mais confortável pra ser.

Dormir bem, assim como comer bem, é fundamental pra manutenção dos nossos ritmos
Dormir bem é importante demais, garantem os gatinhos

Como saber como você funciona

Existe um teste que pode te ajudar a perceber melhor como você funciona. Ele foi elaborado por um médico especialista em sono chamado Michael Breus, que estudou esses padrões: os cronotipos. O Dr. Breus defende que essas diferenças são tão significativas que afetam a nossa vida cotidiana intensamente, e por isso merecem serem honradas de maneira mais sistemática. Essa teoria aparece no livro O Poder do Quando, que pra ilustrar os padrões encontrados usou 4 animais diferentes: urso, lobo, leão e golfinho. Você pode fazer o teste aqui (em inglês) pra te ajudar a descobrir qual é o seu.

Geralmente esse teste é associado com estabelecer rotinas pra otimizar a produtividade ao se encontrar o melhor ritmo, o que foge muito do que defendo por aqui. Ainda que ser capaz de botar coisas no mundo nos dê prazer, essa otimização tem um pressuposto que me incomoda por ser um valor em si mesmo. Sentir-se bem, embora faça parte dessa equação de aumentar a produtividade, acaba não sendo o principal objetivo. Mas é estranho porque produzir coisas deveria ser algo secundário, que vem naturalmente desse bem estar e de estar vivo, e não o contrário.

A verdade é que não gosto tanto da abordagem do Dr. Breus. A percepção de que temos ritmos diferentes é interessante, mas ele usa isso de uma forma muito prescritiva, com esse forte viés de otimização da vida cotidiana que eu acho muito estranha – aconselhar a melhor hora pra se fazer o melhor sexo baseado em cronotipos e não na hora em que eu estou com vontade e tesão me parece no mínimo rídiculo. O teste é curto e menos assertivo e científico do que ele sugere no livro, mas ainda acho que dá pra olhar pra essas ideias sobre as diferenças dos nossos ritmos de maneiras interessantes.

A Ana Carolina no Eu Organizado tem uma leitura que eu acho singular desse trabalho. Ela parece não se preocupar tanto com as prescrições e sim observar a importância de entender que nós somos diferentes. Portanto, se organizar não cabe muito bem dentro de fórmulas e sim no encontrar um lugar confortável próprio. É preciso conhecer seu processo. Estimular um ritmo mais natural e conveniente, que envolva pausas, descanso e espaço pra ser é uma forma de se organizar e fazer o que precisa ser feito, mas também de se sentir bem.

Outra coisa que acho interessante de extrair desse estudo é perceber a proporção da distribuição dos cronotipos. Se você fez o teste, tem uma chance muito grande de que o seu resultado tenha sido urso – como o meu. Estima-se que mais da metade da população tem esse cronotipo – e isso explica inclusive que a gente se organize socialmente com esse horário comercial de 8 as 18.

Mas mais do que entender porque nos organizamos assim, vale reparar que dentre todos os animais, o urso é o mais robusto e lento, e o que mais precisa repor energia de um modo sistemático. Comer bem, dormir bem – e de vez em quando hibernar -, ter momentos de descanso durante uma parte do dia, são coisas fundamentais pra todos. Mas o cronotipo do urso é que mais sofre quando vê essa rotina ser desrespeitada. E isso é relevante porque essa lógica de ritmos muito intensos, que pula refeições eventualmente ou que não tem um turno de descanso ao longo do dia de trabalho são inviavéis pra uma parte considerável da população.

Essa discussão é muito importante porque coisas básicas e fisiológicas como dormir e comer bem tem muito a ver com essa estrutura de coisas que nos permitem ter uma vida satisfatória, e não somente produzir coisas. Fazer comida e encontrar um ritmo pra que esse fazer faça parte da vida é algo importante dentro desse processo. Ainda que a gente possa viver apenas se alimentando do que outras pessoas produzem, cuidar daquilo que a gente come traz uma gratificação por fazer parte do processo. Comer deixa de ser mais uma coisa fragmentada nas nossas rotinas em que quase nada resulta num resultado concreto e inteiro. E isso também pode ser uma fonte de prazer.

Vasilhas de bambu vazias, prontas pra serem preenchidas com a sua rotina

Ritmo confortável e organização

Mais do que uma ideia prescritiva do que é melhor de ser feito em cada momento, tomar consciencia de que existem muitas formas de ser é também se dar conta de que o conselho repetido à exaustão de que uma manhã de sucesso envolve acordar as 5h pra fazer uma rotina muito cumprida de pequenas tarefas facilmente completáveis pode não ser a melhor opção pra você.

Isso vale também pra se pensar na forma de organizar as refeições. Eu contei no início sobre os grãos germinando e sobre como fazer uma parte importante do processo – esse de drenar a água do demolho, enxaguar os grãos, colocar a redinha e finalmente coloca-los pra germinar de cabeça pra baixo no escorredor – é muito mais sujeito à ser esquecido se eu deixar pra fazer à noite do que se eu fizer durante a manhã, como costumo fazer. Na verdade, não são só os germinados que saem atrapalhados; eu evito a todo custo fazer coisas complexas na parte da noite, horário em que geralmente tenho pouquíssima energia e atenção. Como tenho preferido jantar do que fazer um lanche quando o dia acaba, e não gosto de repetir uma mesma comida, me organizo pra deixar isso mais ou menos organizado pra ser feito o mais rapidamente no final do dia, quando já sei que estarei sem disposição. Legumes ficam devidamente picados. Folhas ficam lavadas na secadora. Talvez uma parte da refeição já esteja pronta, como um arroz ou uma torta que deixei congelada, pronta pra ser completada com alguma coisa fresca. Já por volta da hora do almoço é o horário em que faço todos os processos de pré-preparo que eu tiver no dia porque me sinto ágil e dou conta de gerenciar muitas coisas ao mesmo tempo. Também já sei que se eu não tiver uma boa noite de sono é muito mais provável que eu peça delivery no dia seguinte. Reconhecer isso também é importante pra me aceitar e não me sentir mal quando preciso mudar os planos.

Conselhos sobre organização da rotina pra colocar o cozinhar em prática jamais deveriam valer pra todo mundo. Ainda que você seja um tipo urso na tipologia cronotípica, como eu, esses conselhos nem sempre são generalizáveis. Comer tem uma coisa de gosto e de prazer envolvido. Tratar a tarefa como uma coisa simplesmente a ser otimizada é tornar esse espaço pouco criativo e alegre. Fazer grandes quantidades de comida aos fins de semana pra comer repetidamente durante a semana, por exemplo, pode estar muito longe do que você considera confortável. Cafés da manhã fartos que parecem perfeitos pra aparecer no instagram podem não ser compatíveis com uma manhã que começa mais lenta e uma barriga que não parece tão esburacada de fome.

Não existe uma rotina certa assim como não existe uma dica universal. É importante cultivar uma percepção de que essas coisas são bastante variáveis. Se conhecer e conhecer as outras pessoas da casa faz mais diferença que o conselho solto do amigo na hora de encontrar o que funciona pra vocês. E é importante ter em vista que ainda que os cronotipos sejam razoavelmente estáveis, as necessidades sempre estarão sujeitas à mudanças.

Também é bom lembrar que os horários de cozinhar nem sempre precisam ficar deslocados no tempo que sobra. Levar a sério a importância de comer e dormir bem pode requerer que essas coisas ocupem horários importantes e produtivos pra que não se desista. Não é a decisão mais intuitiva de ser tomada no mundo em que a gente vive, e ainda que existam uma série de ressalvas quanto a isso ser de fato uma escolha, ela ainda é uma decisão possível.

É claro também que do mesmo jeito que nem sempre dá pra entender na prática como a gente funciona de um jeito mais confortável, também pode ser difícil adequar seu cronotipo e a tarefa de fazer comida às exigências de horário que fazem parte da sua vida. Muita gente tem que lidar com horários de trabalho arbitrários que não podem ser negociados, mães e pais de bebês e crianças acabam tendo de se conformar com o horário dos pequenos, e qualquer rotina está sempre sujeita à imprevistos de duração indeterminada. Ainda que a margem de escolhas seja pequena, há sempre pequenas coisas que você pode cuidar na sua rotina. Encontrar um tempo que funciona melhor pra ter disposição de cozinhar foi essencial pra que eu me encontrasse nessa tarefa. Conhecer melhor seu funcionamento é válido não necessariamente para produzir mais, mas também pra escolher melhor o que é importante pra você.